quinta-feira, 21 de novembro de 2013

As árvores e a consciência


Já há algum tempo tenho falado sobre o determinismo linguístico, aquela corrente que afirma serem nossos pensamentos determinados pela linguagem, embora pareça uma inversão do senso comum, de que a linguagem é fruto do pensamento. Marshall Mc Luhan, em “Revolução na Comunicação”, em 1966, recolheu relatos sobre a linguagem da tribo Wintu, na Austrália, cujos membros denominavam árvores com substantivos próprios.

Na contramão de nossa herança grega, que sintetiza o mundo em categorias ligadas a ideias, não havia a palavra árvore, mas cada objeto particular que entendemos como árvore recebia um nome diferente. Esse trabalho mais próximo da antropologia que da gramática, revela um pouco do pensamento e do modo de viver aborígine, bem como o nível de respeito que têm com os objetos que denominam particularmente, como fazemos, em nossa língua, com pessoas.

Pois bem. Nessa semana, por coincidência, em uma conversa com meu dentista – por um momento aquele consultório parecia um boteco em que os amigos debatiam o futuro da nação! – surgiu uma questão cuja resposta encontra eco no Determinismo Linguístico.

O mencionado dentista, Dr. Calegari, de seu gabinete reclamava da falta de consciência de alguns indivíduos que comentem crimes, da impunidade brasileira para com tais cidadãos, das eventuais sanções que eles mereceriam, chegando mesmo a mencionar a pena de morte como solução para a criminalidade! Observei que cristãos como nós – sim, ele também é um bom católico – deveriam orar e trabalhar para que eles tomassem a tal “consciência”. Reparem nas aspas.

O que é a consciência, então, para nós, de países que falam Português? O sujeito pode acordar todo dia, tomar seu café, ir trabalhar, voltar para casa, e é totalmente consciente de seus atos. Pode viver sua vida como esta se lhe apresenta e está consciente. Pode roubar, matar, enganar, e também está plenamente consciente de seus atos. Ele escolheu o mal. Está consciente disso. Merece ir para a cadeia, pois se não tivesse consciência, iria para o manicômio judiciário. Não sou advogada, mas parece-me que o senso comum e a vivência demonstram mais ou menos isso. Mas o que isso tem a ver com as árvores da floresta australiana?

“Consciência” pode ser considerada uma síntese imprópria, por guardar significados que estão fora do léxico, da própria denominação, que nos propõe para cada palavra um conceito ou objeto diferente. “Con- sciencia” indica a condição de estar com o conhecimento de algo. Mas que algo é esse? É a própria Ciência? É estar ciente ou ter conhecimento de si mesmo e do outro? Essa palavra traiçoeira está para nós como está o nosso verbo “ser” para o “ to be” do Inglês.

Sabemos muito bem que “ser” não é “estar”. Enquanto o primeiro verbo refere-se a uma condição permanente, o segundo é um estado provisório ou transitório. Ser doente e estar doente indicam situações completamente diversas. Por isso, eu sou professora e o prefeito está no poder. O poder é transitório, enquanto a atividade educacional é sempre permanente.

Em inglês temos duas palavras para consciência: “conscience” e “consciousness”. O primeiro substantivo, “conscience” refere-se à consciência de si, do outro, do que se deve fazer ou não, é condição de lucidez física e sobrevivência social. Não tivesse o ser humano essa consciência, estaria em estado vegetativo ou internado em um hospício. Acordar (“awake”) tem raiz e classificação diferente de estar consciente, embora possa, em muitos contextos, ser utilizado para denominar o indivíduo que chega a algum estado de consciência, seja após o sono, ou de prontidão.

O segundo substantivo, “consciousness”, tem seu significado, em dicionário, totalmente diferente, é uma palavra cujo conceito só pode ser compreendido em Língua Portuguesa por meio de um conjunto de sinônimos: “consciência psicológica, sentimento, percepção”. Estudei em uma escola experimental, em 1970, de método Montessori, Escola Irmã Catarina, em São Paulo, em que se praticava realmente a inclusão de todos os alunos, inclusive crianças autistas e com paralisia cerebral. A indisciplina, diferente do que se ouve falar, já grassava as salas de aula naquela época, mas não havia castigos ou punições que dessem conta de casos mais graves. Os professores não tratavam os alunos problemáticos com suspensões, apenas tratavam-nos como “alunos inconscientes”.

Para que eles pudessem continuar o convívio com o grupo, tinham que ir a uma sala pensar. Passar da inconsciência para a consciência. As professoras indicavam o caminho: “Por que o que você fez é errado? A quem prejudicou esse seu ato? Quais as consequências dele? O que aconteceria se todos fizessem a mesma coisa que você?” - diziam elas, abaixando-se e olhando diretamente nos olhos do aluno.

A tomada de consciência, o consciouness dos anglófonos, é o primeiro passo para uma sociedade mais moral e justa. É uma consciência espiritual, transcende o que se deve ou não fazer, é o olhar para dentro e situar-se no mundo com o outro.
Nas diversas escolas em que lecionei, sugeri a criação de uma sala para que o aluno pudesse fazer seu exame de consciência, pois a conduta só se move a partir dessa prática saudável e tão discriminada – hoje, a escola é laica, baniram-se os ensinamentos cristãos e é mais provável encontrarem-se textos pornográficos que passagens da Bíblia.

As árvores dos Wintu tinham cada um seu nome por representarem um sentimento vivo dentro de cada um de seus falantes: o de que aquela particular árvore era única, insubstituível. A palavra consciência, para nós, lusófonos, guarda inúmeros significados e se mistura a ideologias que pouco têm relação com o resgate da ética, do escrúpulo e do sentimento religioso. Arrisco dizer que muitas vezes é a origem de novas palavras, quando conceitos transbordam e antigas nomenclaturas não mais dão conta da riqueza manifestada pelo pensamento.

Acredito que a partir dessa minha última observação deixei claro que não acredito nesse determinismo engessado, pois corre-se o risco de entender a linguagem como uma manifestação que amarra o falante a uma ideia, e assim o espírito da língua seria claramente nominalista, isto é, a função da linguagem seria meramente dar nome às coisas e às ideias, e assim poderia estar a reboque, descolada de seu significado, quando, na verdade, é o contrário. A linguagem como fenômeno é uma experiência de reconhecimento de uma cultura, mas os estudos linguísticos separam-se dos antropológicos justamente nesse ponto: não é possível fazer uma leitura vertical sem emitir algum juízo, um "pecado mortal" para a moderna antropologia. Oxalá possamos separar a consciência de si e do outro, o simples estar no mundo, da consciência divina que mora em nós, no outro e em toda a criação.

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