sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Aqui o passado é presente

Quando estava na faculdade de Letras, uma das lições mais proveitosas que recebi foi sobre Determinismo Linguístico. Segundo essa corrente, as sociedades têm sua cultura determinada pela língua que falam. Para qualquer aluno, a simples ideia de uma língua viva descortina o universo de pesquisa de campo e leitura que o estimula a observar os fenômenos da língua como dados sociológicos ou antropológicos. Um dos teóricos dessa corrente foi Marshall Mcluhan, filósofo e educador canadense, guru citado por muitos linguistas, que até participou como ator no filme “Noivo neurótico, noiva nervosa”, de Woody Allen, fazendo papel de si mesmo e criticando seus supostos leitores.

Em um de seus livros, “Revolução na Comunicação”, Mcluhan menciona características da língua de uma tribo australiana de aborígenes, por exemplo, que não tinham em seu léxico a palavra “árvore”, mas nomeavam cada uma que encontravam com substantivo próprio, de forma que cada árvore representava uma pessoa, com suas necessidades e individualidades. A essa conclusão, acrescento minhas observações sobre algumas peculiaridades da Língua Portuguesa, moldura que nos caracteriza e aprisiona. Não vou cair na armadilha de afirmar que só brasileiro ou português sentem saudades, pois essa palavra só existe na nossa língua. Em outros idiomas, como no Inglês “miss you”, ou no Castelhano “nostalgia”, há similares e o sentimento que mói o coração pela ausência do outro é igual em qualquer lugar do mundo, mas particularidades de língua podem, sim, determinar a cultura, e o primeiro índice é a literatura.

Sabe-se que o povo português sempre foi muito saudosista, voltado para seus heróis e amores do passado, basta ler a jóia da coroa da Literatura Portuguesa, “Os Lusíadas”, de Camões, que conta os feitos de grandes navegadores do passado. Outros exemplos? Eça de Queirós: Em “A Cidade e as Serras”, Jacinto troca o meio urbano pela vida no campo, ação motivada pela busca de uma vida simples, como a de seus antepassados .

Leia Machado de Assis. O que é “Dom Casmurro”, além de uma reflexão de um amor do passado que se consumiu no ciúme? E “Memórias Póstumas de Brás Cubas”? Um homem que já morreu contando seu passado quando era vivo. Mais exemplos: José Saramago, que compôs um “Memorial do Convento”, voltado para eventos e aventuras ocorridos no século18; Fernando Sabino, que conta um encontro marcado que não aconteceu. Na poesia, os românticos são o melhor exemplo: Casimiro de Abreu, em “Meus Oito Anos”: “Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!”.

Logo depois e quase concomitantemente ao Romantismo, o parnasiano Olavo Bilac também só usa os verbos no passado, como em “Nell Mezzo del Camin”: “Cheguei. Chegaste./ Vinhas fatigada/ E triste, e triste e fatigado eu vinha./ Tinhas a alma de sonhos povoada, / E a alma de sonhos povoada eu tinha”. A saudade é a tópica nas diversas canções de exílio, entre elas a do mesmo Casimiro de Abreu (Se eu tenho de morrer na flor dos anos,/ Meu Deus! não seja já;/ Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,/ Cantar o sabiá!), embora a de Gonçalves Dias seja até decalcada no Hino Nacional Brasileiro (Nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores).

O maior poeta modernista português, Fernando Pessoa, só para citar o ortônimo, fora os heterônimos, é todo voltado para o glorioso passado dos navegadores, como em “Mar Português”: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram...”.

Por isso, resolvi fazer uma investigação das razões dessa melancolia introjetada nas veias, típicas não só do português, como do brasileiro. Compartilho algumas dessas descobertas deterministas.

Na nossa língua, para falar no pretérito há quatro tempos no modo Indicativo: o Pretérito Perfeito, que é um passado terminado: amei e ponto; o Pretérito Imperfeito, que é o passado ainda recorrente: amava e amava e amava; o Pretérito Mais que Perfeito, que designa um passado antes do passado: amara a mulher que se foi (uma filigrana da língua, um preciosismo digno de orgulho, tal a pormenorização acerca do tempo); e o Futuro do Pretérito: ele amaria aquela mulher que o fez de trouxa, isto é, até no futuro há um gosto de passado que poderia ter acontecido!

No modo Subjuntivo, cada vez mais em desuso pelos falantes (é cada vez mais comum o uso do indicativo: “Você quer que eu fico com você?”, em vez de “Você quer que eu fique com você?”), também há o Pretérito Imperfeito, condicional: Se eu amasse! Se eu fizesse! E as formas nominais? O particípio “amado”, que sempre forma um composto com verbo auxiliar: fui amado, era amado, mais corrente na linguagem oral. O gerúndio, forma amaldiçoada por alguns, mas uma expressão clássica quando bem empregada, como o fizeram Camões, Vieira e muitos outros, dá um toque de passado que ainda persiste no presente, um jeito brasileiro de protelar as atividades: estou trabalhando até dar a minha hora, estou amando até não sei quando.

Ao todo, portanto, são sete as possibilidades de expressão pretérita. Para o futuro, apenas dois tempos: o Futuro do Presente: eu amarei esta mulher; este um futuro seguro, ancorado no agora, e só este, pois no Subjuntivo o futuro é incerto: Quando eu amar...vou me entregar totalmente. Não é de surpreender a idéia sebastianista, o messianismo farisaico, o arrependimento tardio, a suposta falta de memória traduzida na reivenção da roda, a necessidade do pai salvador e da mãe mandona e chorosa, arquétipos da cultura dos países lusófonos.

Os publicitários brasileiros parecem já ter entendido muito bem essa tendência, em vista do sucesso de algumas propagandas. Alguém se lembra do comercial “O primeiro sutiã”? No anúncio da marca Valisére veiculado na TV, criado pela agência W/GGK em 1987, atual W/Brasil, e protagonizado por Luciana Vendramini, uma menina no início da adolescência abandona seu ursinho de pelúcia no canto da cama e olha, encantada, no espelho, o efeito sensual de usar um sutiã. Premiado, o comercial certamente não era destinado às jovens que usariam seu primeiro porta-seios, mas às mulheres maduras, nostálgicas da experiência única, do passado. Por breves momentos elas tiveram a oportunidade de reviver breves momentos novamente o ritual de passagem de menina a mulher. Na intenção dos publicitários, tal experiência poderia ser repetida com o uso daquele produto, com aquela marca, pelas efetivas consumidoras.

Como falei anteriormente na literatura em Língua Portuguesa, voltada para o passado por razões até gramaticais, em contrapartida devo reportar-me à literatura em Língua Inglesa, que se carcateriza pela pouca flexão verbal. Há uma profusão de publicações de ficção científica, fantástica e de suspense e terror, em autores como Isaac Asimov, Aldous Huxley, H.G Wells e muitos outros.
Recentemente, assisti a um desenho norte-americano produzido pelos estúdios Disney, “A Família do Futuro”, voltado ao público infantil, cuja temática era o dilema entre o resgatar o passado ou apostar no futuro. O enredo retratava uma das situações mais prementes para justificar a recorrência ao passado: um menino tem a possibilidade de voltar ao dia em que foi abandonado por sua mãe biológica na porta de um orfanato e dissuadi-la, tendo outro destino e acabando com todos os sentimentos de rejeição que o acompanharam até a fase da adolescência. No entanto, ele tem outra opção: aceitar o passado e apostar no futuro, na adoção por outra família.

A partir da compreensão linguística e social dos países de língua Inglesa, fica fácil adivinhar qual foi o final da história! O desenho é coroado com uma citação de Disney, e lembra seu lema “siga em frente”, que ilustra bem a diferença de pensamento entre eles e nós: There’s really no secret about our approach. We keep moving forward—opening up new doors and doing new things—because we’re curious. And curiosity keeps leading us down new paths." (Não há realmente nenhum segredo sobre nossa abordagem. Continuamos a avançar – abrindo novas portas e fazendo coisas novas – porque somos curiosos. E a curiosidade nos leva a trilhar novos caminhos).

Os gêneros e produtos em geral voltados para o futuro têm pouca ou nenhuma popularidade por aqui. Os editores e escritores de ficção científica, por exemplo, têm que bancar do próprio bolso a publicação de contos, coletâneas, promover concursos e ainda assim sofrem no mercado comercial. Sem ressentimentos, é só constatação de que o passado está na nossa alma e é o nosso negócio na literatura e na vida, o próximo passo é aproveitá-lo para viver o presente e projetar o futuro. Quem viver, verá.

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