“Os
Sertões”, uma reportagem maior que a falácia literária
Se houvesse uma obra que eu pudesse eleger como a grande
catedral da História política do Brasil, certamente seria “Os Sertões”, de
Euclides da Cunha. Pouco lido e muito estudado, o livro é produto das
reportagens de Euclides para o jornal O Estado de São Paulo, como
correspondente em Canudos. Este mês foi lançada uma edição crítica da obra, pela
editora Ubu, de autoria da prof.a Walnice Nogueira Galvão, que levou em
consideração as anotações e correções que o autor fez de próprio punho, o que
daria mais luz a este conjunto de escritos. A pesquisa da professora contemplou também as
cartas trocadas entre Euclides e Júlio Mesquita, do Estadão. Segundo Walnice, o autor fez questão de
suprimir mais de mil vírgulas do escrito, o que por si só muda substancialmente
o texto.
Ou mudaria, se fosse levado em consideração o gênero do
escrito. Não vou fazer aqui uma resenha dessa edição, estou aqui para falar de “Os
Sertões” como documento e criticar os que ignoraram ser ele de uma categoria
informativa e produto de um tempo em que a notícia ia acontecendo ao longo dos
dias sem se transformar em História tão rapidamente. Talvez seja esse um ponto
difícil de abordar, pois exige um deslocamento do nosso olhar da letra para
todo o contexto e o significado de ser um repórter na virada do século 19 para
o século 20.
Euclides foi contratado como correspondente de guerra,
pois o conflito de Canudos assim se anunciava e exigia documentação. Lá foi o repórter
Euclides para o sertão da Bahia cobrir. Sair de um centro urbano, embora São
Paulo não tivesse a pujança de hoje, para uma terra inóspita já demandava muita
disposição de corpo e espírito, mas escrever reportagens que pudessem espelhar
cada um dos atores, dos conflitos, da paisagem, de forma a envolver o leitor
acabou sendo a armadilha em que a obra caiu, pois a fortuna crítica que se
seguiu à publicação integral, em 1902, “alçou” os Sertões de texto informativo
e histórico a Literatura no sentido estrito. Matou o texto sem por ou tirar
vírgula ou ponto. Aprisionado, “Os Sertões” recebeu todos os insultos
possíveis: barroco, linguagem rebuscada, naturalista e outros “istas”, difícil
de ler...só faltou dizer que não tinha ilustrações. Até de romance foi acusado! Recebeu elogios,
também, claro, embora a homenagem fique mais na intenção que no ato: Obra
monumental,retrato de um Brasil da época, trabalho artístico e poético.
Sempre pensei esse deslocamento de gênero mais como castigo
que como prêmio. Parece que alguns críticos e ensaístas preferem ler textos
informativos ressaltando suas qualidades poéticas por acharem que o escrito é bom
demais para ser “apenas” jornalístico, ou que ao conferir certa aura de obra de
arte à utilitária reportagem aumentam o cânone literário da Língua Portuguesa.
Convenhamos, ela não precisa disso. Ninguém precisa, porque o conjunto da obra
de um idioma é composto pelo colorido da literatura em sentido amplo, da bula
de remédio à dramaturgia, da carta prosaica à poesia lírica. “Os Sertões” é a reportagem mais fiel da
tragédia ocorrida em Canudos. Para tirar uma foto sem trair a imagem, Euclides
usa todas as tintas de que dispõe, naquele momento e espaço. Começa por definir
uma terra, caracterizar um homem e contar uma luta que ocorreu naqueles rincões
em que um povo, esquecido pelo governo e lembrado sem dó quando da afirmação de
suas ideias e modo de viver, foi dizimado sem rendição.
Estuda-se muito pouco a guerra de Canudos nas escolas,
assim como a revolta da Armada e todas as batalhas e guerras pela restauração
da Monarquia no Brasil, abafadas as repercussões pelo governo republicano que
proibiu todas as manifestações em favor da Família Imperial e reprimiu cruelmente
qualquer tentativa de levante até 1988. Foi nessa ocasião que a constituição
permitiu que se falasse sobre o regime monárquico, com a proposição de um
plebiscito anacrônico, uma vez que a população não tinha mais a memória da
monarquia. Esses maus leitores,
ensaístas, professores, historiadores e críticos que colaboraram, conscientemente
ou não, para a amnésia nacional, são diretamente responsáveis pelas catástrofes
educacionais e políticas que sofremos hoje. Tal plebiscito foi claramente premeditado
para beneficiar a república sedimentada sobre um golpe de oligarquias
escravocratas, que aí estão até hoje ocupando cadeiras no congresso nacional e
nos cargos executivos.
Em uma de suas excelentes aulas, o diretor de teatro e professor
Fernando Peixoto comentou sobre a maneira certa e a maneira errada de se montar
um texto como Hamlet, de Shakespeare. Não há uma maneira “certa” de se montar
um Shakespeare, mas certamente há muitas maneiras “erradas”. Uma delas é tratar
Hamlet como uma peça psicológica, colocando o protagonista em conflito consigo
mesmo como se precisasse de divã e remédio tarja preta para entender seus
sentimentos conflitantes (ah! Que romântico, que piegas!). Outra é entender que
essa tragédia faz parte de um bloco político inserido em uma obra densa e
provocadora, que fala ao nosso discernimento e afeta nossas decisões, questiona
nossa liberdade. Era assim que ele montaria Hamlet: a luta pelo poder e suas
consequências. Um Hamlet que valoriza o senso crítico e desafia o senso comum.
Do mesmo modo, “Os Sertões” tem sido ignorado por professores
de História, historiadores e livros didáticos; surge como ilustração de um
discurso diametralmente oposto, cultivado na ideologia de um gênero poético,
fazendo o autor se revirar no túmulo.
Outra vez, há muitos anos, quando de uma defesa de tese
sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade, o próprio poeta estava presente, no
fundo da sala, pois fora convidado e elegantemente ficou assistindo à palestra
da mestranda sem se pronunciar. Ao final, alguém da banca o reconheceu e pediu
que viesse à mesa. Ele assomou o lugar à frente e foi logo questionado sobre o
que havia achado da apresentação da aluna e das observações dos professores
sobre sua vida e obra. Humildemente respondeu: “Hoje vivi essa magnífica
experiência de saber coisas sobre mim e meus poemas que eu mesmo não conhecia,
eu realmente ignorava que tinha feito tudo isso”. Há quem veja na observação o
exemplo de uma obra aberta merecedora de louros. Eu teria reprovado a aluna. E
a banca toda. Um trabalho que promove o estranhamento do próprio autor diante
de sua obra deve estar mentindo. É fruto de vaidade intelectual.
Na condição de repórter, Euclides da Cunha escreveu “Os
Sertões” para informar o que estava acontecendo de terrível, trágico e perverso
em Canudos, com a linguagem realista da época e não pode ser acusado pessoalmente
de positivista ou determinista no sentido lato, pois esse traço comum na
abordagem do final do século 19 está em todas as grandes reportagens e mesmo
crônicas como as de Lima Barreto e Monteiro Lobato.
A fim de promover a coleção de dois volumes que integram
a edição crítica de ‘Os Sertões”, o jornal o Estado de São Paulo realizou um
debate na Livraria Cultura com as professoras Walnice Nogueira Galvão, Flora Süssekind
e o teatrólogo Zé Celso. Desnecessário dizer que o último convidado
carnavalizou o evento e monopolizou as atenções ao expor sua visão delirante sobre
a obra que ele adaptou para o teatro.
Perspectivas acadêmicas que amarram os
discursos a modelos literários, bem como leituras subjetivas e psicológicas que
tentam submeter um texto às suas vontades, ambas são falácias que derretem diante
da narrativa seca, verdadeira e pontuada pelo repórter Euclides da Cunha como
fato irretocável: “Concluídas as pesquisas nos
arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os
cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os
corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente
espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos
marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs
multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas,
cantis e mochilas...”