quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Brega era sua avó!

Tudo começou quando o amigo cantor e compositor Márcio Greyck postou uma reclamação que recebeu pelo Facebook: “Uma pessoa daqui me disse que eu não deveria mais cumprimentar dizendo ‘Boa noite, Faces’, porque era brega”. Esse gatilho disparou a ideia de escrever esta crônica, quase um desagravo para o querido e bem-sucedido artista que começou sua carreira nos anos 60 cantando músicas românticas como “Aparências” e “As Lembranças”.
Como não ouço palavra que peça passagem livre de um ouvido a outro de minha cabeça, “Brega” dançou pela minha reflexão e me levou à adolescência, quando fui testemunha de sua etimologia.
Você sabe o que é uma falsa etimologia? Ao longo de minha história como professora e jornalista, deparei-me com algumas: “forró” teria origem em  “for all”, bailes que os militares americanos promoveriam  “para todos”, nas bases militares nordestinas na segunda guerra. Essa bobagem até engraçada encontra a verdade em Câmara Cascudo, que aponta a correta etimologia como uma derivação de “forrobodó”, que em banto significa “confusão”, “arrasta-pé”.
O mesmo ocorre com outras palavras cuja apropriação para construção de uma mitologia não se sustenta, ao contrário, justifica o preconceito e aprofunda as divisões na sociedade. “Brega” é o outro caso. Procuro por curiosidade em diversos sites a origem dessa palavrinha de duas sílabas, que designa muito mais que um gênero musical, mas uma estética que passa pela moda e até pela forma de pensar e de se comportar.
Etimologia que chega a ser risível credita à palavra “Brega” um erro de letreiro em neon. Em uma cidade do Nordeste uma boate chamada “Nóbrega” e que apresentava shows de Waldick Soriano, Odair José e outros afins teve o trecho ”Nó” apagado e as pessoas passaram a chamar a boate de “Brega”, pois foi o que sobrou do cartaz falhado! E coitado do Padre Nóbrega, que teve seu nome emprestado para esse falso anagrama!
Bem, fim da piada, vamos à verdade dos fatos (sim, pois só se pode provar por fatos, que os argumentos bailam no vento da História). O termo “Brega” remonta os anos 70, começou como gíria, fruto de preconceito contra as empregadas domésticas.  “Brega” é corruptela de “empregada”. O termo nasceu em São Paulo, não tem nada a ver com o Nordeste, assim como Forró não tem relação com as bases militares da segunda guerra, pois o termo era utilizado desde o século 19.
O que estava na cesta básica cultural das empregadas domésticas nos anos 70? Fotonovelas, programas de auditório como os de Chacrinha e Sílvio Santos, música romântica, roupas e acessórios baratos, pois o salário sempre foi aviltante e o trabalho, quase escravo; e pensamento de senso comum, traduzido por linguagem de massa: “Só o amor constrói”, “Sou pobre, mas honesto”, “dinheiro não traz felicidade”, valores que hoje estão esquecidos, infelizmente.
Mas a cereja do bolo de ser brega era a breguice. Sim, brega passa de adjetivo a substantivo abstrato para designar um modo de ser e enterrar de vez as possibilidades de ascensão social: você pode deixar de ser brega, mas a breguice nunca vai sair de quem é ou foi brega. Cruel, não é? O uso dessa palavra, e como acabei de argumentar, desse conceito, tem raiz funda na sociedade brasileira e remonta o pensamento escravocrata que considera a empregada doméstica um patrimônio da família, uma mucama, que passa de geração a geração. Ah! Esse tipo de empregada não existe mais! Ainda bem que temos cada vez menos mulheres que se submetem a dormir em um quarto senzala de dois por um e ficar até meia noite para lavar a louça e “passar um paninho”. Quero deixar claro aqui também que não estou na defesa da profissão, deixo isso para os sindicatos. O assunto aqui é a origem preconceituosa da gíria “brega”, que sobreviveu aos governos militares, à abertura, aos planos econômicos e à tragédia política dos últimos anos.
Nos anos 90, uma onda retrô sobreveio e garantiu o sucesso de músicos como Falcão, que deu uma nova (ou velha) roupagem ao brega, com figurino exótico,  melodias  populares e bem-humoradas, redirecionando o termo e consolidando o uso dessa palavra como a empregamos até os dias atuais. Mais ajustada à classe média e “moderninha”, alçada a cult pelos Mamonas Assassinas e Titãs, alguns compositores emplacaram até novas versões em vozes de antigos desafetos como Caetano e Gil. Mas o DNA ficou: “Brega” é corruptela de empregada.
E como crueldade é pouco para os preconceituosos de plantão, o termo se estende a aqueles que produzem bens culturais para o segmento popular. Márcio Greyck, Wanderley Cardoso, Agnaldo Timóteo e Roberto Carlos poderiam se encaixar nesse conceito? Apenas para os pseudo-intelectuais que hoje dividem a sociedade e insistem em promover luta de classes. No mundo real, todos somos iguais e precisamos uns dos outros, e a derrocada do empresário é não ter um funcionário bem-preparado. E a do funcionário é não ter um patrão que possa pagar o seu salário. No mundo real, o advogado ouve música sertaneja e o motorista do ônibus coloca em seu ipod pop americano, e por aí vai. A estética brega se incorporou ao nosso dia a dia, virou sinônimo de popular.

Márcio Greyck, um pouco mais velho e experiente, continua bonito e saudável, cabelos longos e violão, cantando músicas românticas e fazendo muitos shows. Sua trajetória de vida está de acordo com a obra. Casou-se, teve filhos e mora feliz em um sítio bucólico.  De seu computador, provavelmente em um escritório que tem uma linda vista para o jardim, ele coloca no Facebook imagens de flores, boa comida mineira, paisagens e animais. Suas palavras sempre são gentis e motivadoras.  Mas existe o brega, sim: o pensamento brega, vulgar, o senso comum dos discursos que pregam que “cada caso é um caso”, “gosto não se discute”, e “tudo é relativo”. Desses, eu quero distância, pois são aparências, nada mais!