Tudo começou quando o amigo cantor e compositor
Márcio Greyck postou uma reclamação que recebeu pelo Facebook: “Uma pessoa
daqui me disse que eu não deveria mais cumprimentar dizendo ‘Boa noite, Faces’,
porque era brega”. Esse gatilho disparou a ideia de escrever esta crônica,
quase um desagravo para o querido e bem-sucedido artista que começou sua
carreira nos anos 60 cantando músicas românticas como “Aparências” e “As
Lembranças”.
Como não ouço palavra que peça passagem livre de
um ouvido a outro de minha cabeça, “Brega” dançou pela minha reflexão e me
levou à adolescência, quando fui testemunha de sua etimologia.
Você sabe o que é uma falsa etimologia? Ao longo
de minha história como professora e jornalista, deparei-me com algumas: “forró”
teria origem em “for all”, bailes que os
militares americanos promoveriam “para
todos”, nas bases militares nordestinas na segunda guerra. Essa bobagem até
engraçada encontra a verdade em Câmara Cascudo, que aponta a correta etimologia
como uma derivação de “forrobodó”, que em banto significa “confusão”, “arrasta-pé”.
O mesmo ocorre com outras palavras cuja
apropriação para construção de uma mitologia não se sustenta, ao contrário,
justifica o preconceito e aprofunda as divisões na sociedade. “Brega” é o outro
caso. Procuro por curiosidade em diversos sites a origem dessa palavrinha de
duas sílabas, que designa muito mais que um gênero musical, mas uma estética
que passa pela moda e até pela forma de pensar e de se comportar.
Etimologia que chega a ser risível credita à
palavra “Brega” um erro de letreiro em neon. Em uma cidade do Nordeste uma
boate chamada “Nóbrega” e que apresentava shows de Waldick Soriano, Odair José
e outros afins teve o trecho ”Nó” apagado e as pessoas passaram a chamar a
boate de “Brega”, pois foi o que sobrou do cartaz falhado! E coitado do Padre
Nóbrega, que teve seu nome emprestado para esse falso anagrama!
Bem, fim da piada, vamos à verdade dos fatos (sim,
pois só se pode provar por fatos, que os argumentos bailam no vento da
História). O termo “Brega” remonta os anos 70, começou como gíria, fruto de
preconceito contra as empregadas domésticas.
“Brega” é corruptela de “empregada”. O termo nasceu em São Paulo, não
tem nada a ver com o Nordeste, assim como Forró não tem relação com as bases militares
da segunda guerra, pois o termo era utilizado desde o século 19.
O que estava na cesta básica cultural das
empregadas domésticas nos anos 70? Fotonovelas, programas de auditório como os
de Chacrinha e Sílvio Santos, música romântica, roupas e acessórios baratos,
pois o salário sempre foi aviltante e o trabalho, quase escravo; e pensamento
de senso comum, traduzido por linguagem de massa: “Só o amor constrói”, “Sou
pobre, mas honesto”, “dinheiro não traz felicidade”, valores que hoje estão
esquecidos, infelizmente.
Mas a cereja do bolo de ser brega era a breguice.
Sim, brega passa de adjetivo a substantivo abstrato para designar um modo de
ser e enterrar de vez as possibilidades de ascensão social: você pode deixar de
ser brega, mas a breguice nunca vai sair de quem é ou foi brega. Cruel, não é? O
uso dessa palavra, e como acabei de argumentar, desse conceito, tem raiz funda
na sociedade brasileira e remonta o pensamento escravocrata que considera a
empregada doméstica um patrimônio da família, uma mucama, que passa de geração
a geração. Ah! Esse tipo de empregada não existe mais! Ainda bem que temos cada
vez menos mulheres que se submetem a dormir em um quarto senzala de dois por um
e ficar até meia noite para lavar a louça e “passar um paninho”. Quero deixar
claro aqui também que não estou na defesa da profissão, deixo isso para os
sindicatos. O assunto aqui é a origem preconceituosa da gíria “brega”, que
sobreviveu aos governos militares, à abertura, aos planos econômicos e à
tragédia política dos últimos anos.
Nos anos 90, uma onda retrô sobreveio e garantiu o
sucesso de músicos como Falcão, que deu uma nova (ou velha) roupagem ao brega,
com figurino exótico, melodias populares e bem-humoradas, redirecionando o
termo e consolidando o uso dessa palavra como a empregamos até os dias atuais. Mais
ajustada à classe média e “moderninha”, alçada a cult pelos Mamonas Assassinas
e Titãs, alguns compositores emplacaram até novas versões em vozes de antigos
desafetos como Caetano e Gil. Mas o DNA ficou: “Brega” é corruptela de
empregada.
E como crueldade é pouco para os preconceituosos
de plantão, o termo se estende a aqueles que produzem bens culturais para o
segmento popular. Márcio Greyck, Wanderley Cardoso, Agnaldo Timóteo e Roberto
Carlos poderiam se encaixar nesse conceito? Apenas para os pseudo-intelectuais que
hoje dividem a sociedade e insistem em promover luta de classes. No mundo real,
todos somos iguais e precisamos uns dos outros, e a derrocada do empresário é
não ter um funcionário bem-preparado. E a do funcionário é não ter um patrão
que possa pagar o seu salário. No mundo real, o advogado ouve música sertaneja
e o motorista do ônibus coloca em seu ipod pop americano, e por aí vai. A
estética brega se incorporou ao nosso dia a dia, virou sinônimo de popular.
Márcio Greyck, um pouco mais velho e experiente, continua
bonito e saudável, cabelos longos e violão, cantando músicas românticas e
fazendo muitos shows. Sua trajetória de vida está de acordo com a obra.
Casou-se, teve filhos e mora feliz em um sítio bucólico. De seu computador, provavelmente em um
escritório que tem uma linda vista para o jardim, ele coloca no Facebook
imagens de flores, boa comida mineira, paisagens e animais. Suas palavras
sempre são gentis e motivadoras. Mas
existe o brega, sim: o pensamento brega, vulgar, o senso comum dos discursos
que pregam que “cada caso é um caso”, “gosto não se discute”, e “tudo é
relativo”. Desses, eu quero distância, pois são aparências, nada mais!