quinta-feira, 21 de novembro de 2013

As árvores e a consciência


Já há algum tempo tenho falado sobre o determinismo linguístico, aquela corrente que afirma serem nossos pensamentos determinados pela linguagem, embora pareça uma inversão do senso comum, de que a linguagem é fruto do pensamento. Marshall Mc Luhan, em “Revolução na Comunicação”, em 1966, recolheu relatos sobre a linguagem da tribo Wintu, na Austrália, cujos membros denominavam árvores com substantivos próprios.

Na contramão de nossa herança grega, que sintetiza o mundo em categorias ligadas a ideias, não havia a palavra árvore, mas cada objeto particular que entendemos como árvore recebia um nome diferente. Esse trabalho mais próximo da antropologia que da gramática, revela um pouco do pensamento e do modo de viver aborígine, bem como o nível de respeito que têm com os objetos que denominam particularmente, como fazemos, em nossa língua, com pessoas.

Pois bem. Nessa semana, por coincidência, em uma conversa com meu dentista – por um momento aquele consultório parecia um boteco em que os amigos debatiam o futuro da nação! – surgiu uma questão cuja resposta encontra eco no Determinismo Linguístico.

O mencionado dentista, Dr. Calegari, de seu gabinete reclamava da falta de consciência de alguns indivíduos que comentem crimes, da impunidade brasileira para com tais cidadãos, das eventuais sanções que eles mereceriam, chegando mesmo a mencionar a pena de morte como solução para a criminalidade! Observei que cristãos como nós – sim, ele também é um bom católico – deveriam orar e trabalhar para que eles tomassem a tal “consciência”. Reparem nas aspas.

O que é a consciência, então, para nós, de países que falam Português? O sujeito pode acordar todo dia, tomar seu café, ir trabalhar, voltar para casa, e é totalmente consciente de seus atos. Pode viver sua vida como esta se lhe apresenta e está consciente. Pode roubar, matar, enganar, e também está plenamente consciente de seus atos. Ele escolheu o mal. Está consciente disso. Merece ir para a cadeia, pois se não tivesse consciência, iria para o manicômio judiciário. Não sou advogada, mas parece-me que o senso comum e a vivência demonstram mais ou menos isso. Mas o que isso tem a ver com as árvores da floresta australiana?

“Consciência” pode ser considerada uma síntese imprópria, por guardar significados que estão fora do léxico, da própria denominação, que nos propõe para cada palavra um conceito ou objeto diferente. “Con- sciencia” indica a condição de estar com o conhecimento de algo. Mas que algo é esse? É a própria Ciência? É estar ciente ou ter conhecimento de si mesmo e do outro? Essa palavra traiçoeira está para nós como está o nosso verbo “ser” para o “ to be” do Inglês.

Sabemos muito bem que “ser” não é “estar”. Enquanto o primeiro verbo refere-se a uma condição permanente, o segundo é um estado provisório ou transitório. Ser doente e estar doente indicam situações completamente diversas. Por isso, eu sou professora e o prefeito está no poder. O poder é transitório, enquanto a atividade educacional é sempre permanente.

Em inglês temos duas palavras para consciência: “conscience” e “consciousness”. O primeiro substantivo, “conscience” refere-se à consciência de si, do outro, do que se deve fazer ou não, é condição de lucidez física e sobrevivência social. Não tivesse o ser humano essa consciência, estaria em estado vegetativo ou internado em um hospício. Acordar (“awake”) tem raiz e classificação diferente de estar consciente, embora possa, em muitos contextos, ser utilizado para denominar o indivíduo que chega a algum estado de consciência, seja após o sono, ou de prontidão.

O segundo substantivo, “consciousness”, tem seu significado, em dicionário, totalmente diferente, é uma palavra cujo conceito só pode ser compreendido em Língua Portuguesa por meio de um conjunto de sinônimos: “consciência psicológica, sentimento, percepção”. Estudei em uma escola experimental, em 1970, de método Montessori, Escola Irmã Catarina, em São Paulo, em que se praticava realmente a inclusão de todos os alunos, inclusive crianças autistas e com paralisia cerebral. A indisciplina, diferente do que se ouve falar, já grassava as salas de aula naquela época, mas não havia castigos ou punições que dessem conta de casos mais graves. Os professores não tratavam os alunos problemáticos com suspensões, apenas tratavam-nos como “alunos inconscientes”.

Para que eles pudessem continuar o convívio com o grupo, tinham que ir a uma sala pensar. Passar da inconsciência para a consciência. As professoras indicavam o caminho: “Por que o que você fez é errado? A quem prejudicou esse seu ato? Quais as consequências dele? O que aconteceria se todos fizessem a mesma coisa que você?” - diziam elas, abaixando-se e olhando diretamente nos olhos do aluno.

A tomada de consciência, o consciouness dos anglófonos, é o primeiro passo para uma sociedade mais moral e justa. É uma consciência espiritual, transcende o que se deve ou não fazer, é o olhar para dentro e situar-se no mundo com o outro.
Nas diversas escolas em que lecionei, sugeri a criação de uma sala para que o aluno pudesse fazer seu exame de consciência, pois a conduta só se move a partir dessa prática saudável e tão discriminada – hoje, a escola é laica, baniram-se os ensinamentos cristãos e é mais provável encontrarem-se textos pornográficos que passagens da Bíblia.

As árvores dos Wintu tinham cada um seu nome por representarem um sentimento vivo dentro de cada um de seus falantes: o de que aquela particular árvore era única, insubstituível. A palavra consciência, para nós, lusófonos, guarda inúmeros significados e se mistura a ideologias que pouco têm relação com o resgate da ética, do escrúpulo e do sentimento religioso. Arrisco dizer que muitas vezes é a origem de novas palavras, quando conceitos transbordam e antigas nomenclaturas não mais dão conta da riqueza manifestada pelo pensamento.

Acredito que a partir dessa minha última observação deixei claro que não acredito nesse determinismo engessado, pois corre-se o risco de entender a linguagem como uma manifestação que amarra o falante a uma ideia, e assim o espírito da língua seria claramente nominalista, isto é, a função da linguagem seria meramente dar nome às coisas e às ideias, e assim poderia estar a reboque, descolada de seu significado, quando, na verdade, é o contrário. A linguagem como fenômeno é uma experiência de reconhecimento de uma cultura, mas os estudos linguísticos separam-se dos antropológicos justamente nesse ponto: não é possível fazer uma leitura vertical sem emitir algum juízo, um "pecado mortal" para a moderna antropologia. Oxalá possamos separar a consciência de si e do outro, o simples estar no mundo, da consciência divina que mora em nós, no outro e em toda a criação.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Crônica de até daqui a pouco, ou o discurso no funeral do pai poeta

Quando meu pai morreu, em abril de 2009, os familiares e amigos pediram-me para falar algumas palavras por ocasião de sua cremação. Confesso que na dor da perda, saber que poderia falar dele e com ele, ainda que no corpo inerte e passada a alma, foi consolador, sobretudo porque à época ainda não havia me recuperado de um câncer de mama e viajei de São Paulo a Porto Alegre, logo após uma sessão de quimioterapia. Registrei por escrito e publico aqui, com os votos de que cada um possa ver em seu pai o poeta que versa sua vida:

Bom dia!
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todos os amigos que vieram dar “até logo” ao meu pai, Farid Amatti. Eu poderia falar dele a partir de cada um dos papéis ou personagens que ele desempenhou, como todos nós, em sua trajetória de vida, mas acho que ficaria sempre uma parte incompleta, pois cada um que o conheceu tem uma visão compartimentada do que representou: irmão, pai, amigo, marido. Por isso, vou falar de alguém que esteve dentro dele em cada um desses papéis, e que todos nós conhecemos: o de poeta.

Alguns dizem que poeta é aquele que escreve poesia, mas eu discordo, Poeta é aquele que tem um olhar sensível sobre as coisas da vida. Foi desse jeito que papai viveu, amou e até morreu: como poeta.

Feliz de quem tem um pai poeta! Quando eu e meu irmão éramos crianças, ele nos contava as histórias da Bíblia, da mitologia grega e contos de fadas, moldando nossa personalidade e nos estimulando para a cultura e a ciência.

Também amou como poeta: casou-se três vezes, a última com a querida Eliete, sua namorada de infância, a quem escreveu cartas de amor até o último dia de sua vida. E ter um marido poeta, no mínimo, é garantia de um relacionamento com a base mais sólida possível, o amor. Ainda jovem apaixonou-se pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e depois pela profissão de advogado, defendendo os pobres, os indefesos, com generosidade e bom-humor.

Quem tem amigo poeta, como meu pai, sabe que ele desperta o que há de melhor em nós, e assim ele fez com todos os que o conheceram, inclusive seu irmão, Flávio, que mais que amigo, foi o carinhoso Sancho Pança do meu pai Quixote, o conselheiro “pé no chão” do cavaleiro andante e sonhador. Papai poderia ter sido o que quisesse: intelectual, professor, artista, comerciante, industrial, mas foi muito mais: foi poeta.

Não digo que os pais poetas não tenham os defeitos de todos os pais, eles também nos fazem chorar. A primeira vez que ele me fez chorar foi de emoção, exatamente aos oito anos: no centro da sala de nossa casa, à noite, declamou para nós o poema "Meus Oito Anos", de Casimiro de Abreu, cujo trecho preferido era a metáfora de como via sua jornada nesta terra: Como são belos os dias/ do despontar da existência/ respira a alma inocência/ como perfumes a flor/ O mar é lago sereno/ o Céu, um manto azulado/ o mundo, um sonho dourado/ a vida, um hino de amor.

Assim viveu meu pai Farid: como uma criança, desfrutou a vida como uma celebração à alegria da qual ele nunca abriu mão, mesmo em tempos de dificuldades e doenças.

A melhor coisa do mundo é ter um pai poeta! Até com poesia ele escolheu como seria sua morte: ser cremado e ter suas cinzas jogadas no rio Guaíba, ao pôr do sol. A razão é uma das passagens mais poéticas que já vivemos: ele escolheu assim porque da primeira vez que o visitei em Porto Alegre, ele, eu e a Eliete fomos ver o Pôr do Sol no Guaíba. Era uma tarde quente e havia uma festa folclórica na praia, com baianas vestidas de amarelo e dourado, cantando, dançando e muitas pessoas alegres, conversando e bebendo. Ele já se locomovia de cadeira de rodas, mas fomos a um bar com escadas de madeira e um deck, de frente para o rio e o astro-rei: Enquanto a tarde caía, conversamos longamente, profundamente, não apenas como pai e filha, mas como amigos, parceiros e cúmplices que fazem planos para o futuro, entre eles escrever um livro juntos e viajar a Portugal. Ao final, sabíamos que não havia outro lugar no mundo em que desejássemos estar que não fosse ali, vendo o sol se pôr lentamente enquanto as sombras cresciam sob os nossos pés.

Quando eu tinha 3 anos, papai, você mandou fazer mais de uma centena de cartões para serem distribuídos para os amigos, com uma foto minha e um poema que você compôs: “Dos meus 3 aninhos, esta recordação/ aos meus amiguinhos de todo o meu coração”.

Agora, pai, eu te parafraseio e retribuo o poema:

“A todos os meus amigos, deixo esta recordação:/ levo o poeta na alma, e o menino no coração”.

Boa Viagem, pai, nós te amamos nesta e na outra vida.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pai, afasta de mim esse cálice!

Sírio Possenti rubricou um texto meu, "A Língua Portuguesa Venceu!", no site Terra. Pensam o quê? Não é qualquer um que pode ter um professor da Unicamp e linguista como orientador, sem precisar ir de São Paulo a Campinas, pagar pedágio e enfrentar mais de uma hora de viagem. Bendita internet.

Ele diz que meu texto está em itálico e o dele entre parênteses, mas neste artigo que ora escrevo a palavra dele recebe sempre aspas,acrescida da leitura vertical, já que esta é a proposta do blog. Representa respeito respeito ao texto alheio, o qual tive prazer de ler. É verdade que não o autorizei a fazer decalque de meu artigo “A Língua Portuguesa Venceu!”, publicado no site Observatório da Imprensa, e só lá, pois prezo aquele veículo pelo próprio nome: um local de onde se podem observar os movimentos da mídia e comentar com total liberdade. Um site que, acredito, entende a Linguística em sentido amplo, como um estudo de linguagem que não se atrela às especificidades desta ou daquela corrente, mas contribui para o bem maior: a Comunicação.

Com fúria, paixão e ironia, o professor desfere insultos contra o meu texto e minha pessoa, (chama–me “dona Amatti”, ignorando os bons modos!) e por isso não entendo por que ele se absteve de escrever seu próprio artigo, contentando-se em “revisar” um texto que não lhe pertence. A crônica que escrevi e postei - e não “desovei”, termo mais apropriado para quem vai dispensar um cadáver no matagal, ou parir, desembuchar, como a etimologia indica, e parece-me chocante essa última expressão, quase escatológica - não vem para confundir ou agredir pessoas ou instituições, mas esclarecer a influência que a Língua Portuguesa exerce sobre os falantes. Esse era o ponto que gostaria de focar, valores e interesses transparecem não apenas no discurso, mas nas escolhas que emolduram o texto, como demonstra a réplica do linguista. Vou me restringir a alguns pontos que apenas reforçam por que a Língua Portuguesa sempre vence a quem a quer torcer, mais ainda quando esse alguém perde a razão, o equilíbrio emocional e revela sua ideologia ao fazer publicar um apócrifo em sites sem o conhecimento do atacado. Ademais, sem a fineza de recomendar que se leia o texto original, remetendo-o ao link onde foi publicado. Ética é fundamental em qualquer debate.

O título da colagem, “Quem mandou escrever?”, uma pérola para análise do discurso, tem duplo sentido. Literalmente, a pergunta remete ao primeiro parágrafo do comentário do linguista e é uma ameaça: “Quem mandou escrever? Seu pai? Sua mãe? Um partido político? Algum veículo de imprensa de direita, esquerda, subversivo? O pastor? O padre? Está a mando de quem? Diga-me logo quem mandou você escrever, que quero saber! Senão...”. Que medo!

De outro, figurativamente, é a vingança do mau professor: “Quem mandou escrever? Escrever não é para você, “gramatiquinha”. Vá fazer um bolo ou passear no shopping. Agora você vai ver, vou rasurar seu texto, picar o papel, queimá-lo, deturpá-lo, substituir sua linguagem pela minha e fazer tantas rubricas que ninguém mais vai saber o que você escreveu, e nem o que eu escrevi como se fosse você”. Duplo medo! Em ambos os casos, prevalece a ordem: “Cale-se!”

Esse título me fez recordar a época da ditadura, em que nada podia ser publicado sem a prévia censura de funcionários públicos que rabiscavam seus garranchos em letras de música, artigos de jornais, colocavam tarjas pretas em trechos inteiros e escreviam nas margens com caneta vermelha observações risíveis: “este personagem não trabalha, é um vagabundo, não pode”, ou como em uma peça em que fiz assistência de direção: “vetado porque as crianças aparecem cometendo atos cruéis”.

É verdade que aqueles censores eram bem menos preparados que o professor linguista, mas a atitude é a mesma. Não vou comentar nem reclamar por meu raciocínio ter sido chamado de cafona. Não é uma questão de raciocínio, mas de informação acerca de como a linguagem é trabalhada no marketing político. Nada foge ao planejamento. Nenhuma vírgula. Cada palavra, gesto, olhar, enquadramento é estudado e determinado ao candidato que, obediente, segue a cartilha e ganha o pleito. Quem desobedece, é punido com a derrota nas urnas. Em suma, trata-se de uma batalha nos bastidores, em que vence a melhor publicidade. Mesmo pessoas bem-preparadas podem não compreender que isso está nas entrelinhas e faz parte do jogo político. Não é novidade, mas sempre é bom ser didático.

A expressão “presidenta” foi cuidadosamente estudada e mesmo depois de empossada a presidente, a palavra foi plantada em factóides com ampla cobertura de mídia, a exemplo do episódio com Marta Suplicy e Sarney. Preocupo-me, sim, com o rendimento e as atividades do congresso, afinal, somos nós que pagamos as contas, não?

Além de petistas, há outras pessoas que utilizam de modo contumaz a palavra “presidenta”: as feministas que acreditam afirmar seu gênero, os simpatizantes dos exotismos das palavras, ou simplesmente os puxa-sacos que querem agradar à presidente para obter favores ou demonstrar apreço e respeito; nenhum deles está livre para pensar fora das estratégias propostas e divulgadas desde o programa eleitoral gratuito, porque a palavra está colada na ideia, anterior a seu uso.

Digo isso porque não sou, como o linguista disse, “desinformada”. Além de ler inúmeras publicações, ouvir rádio, ler livros e ver quase todos os noticiários, assisti com interesse ao horário político, e por ter passado por quase todas as funções como jornalista, em um momento que prefiro esquecer, tive de trabalhar com marketing político.

Tentei, ao longo do meu texto rubricado, avaliar a quais partes o comentarista dedicava o maior bloco de comentários, a fim de identificar a causa de ter despertado tal paixão, pois com tantos textos anônimos que falam sobre a polêmica “presidente x presidenta” rolando na intenet, bem poderia ele apropriar-se de algum deles. Preferiu o assinado por mim. Estou lisonjeada.
O trecho mais extenso, em que a a linguagem escrita transforma-se em transposição da fala e quase estrangula o texto original, refere-se a uma imagem, uma ilustração a título de exemplo que fiz a respeito dos falantes de “presidenta”, claramente pertencentes ao partido da presidente. Mas ser petista não deve ser insulto ou vergonha, por que seria? Será que alguém pode me explicar quando a democracia se transformou em ditadura da maioria?

Os comentários culminam por me chamar de desinformada e reacionária, em um trecho entrecortado por hifens e com observações deslocadas, não sem antes errar a grafia de meu sobrenome, por um lapso de digitação, tal a sanha assassina do linguista. Isso significa que escreveu freneticamente e não revisou o próprio texto. Ele, sim, o “desovou” em alguns sites, na ânsia de livrar-se da peça, transtornado pelo crime perpetrado. Já estava a imaginá-lo com os cabelos eriçados e fogo a sair pelas narinas!

Como não sou reacionária, entendo a reação de quem se opõe a minhas ideias, ademais porque o trabalho de educar exige muita paciência, e mesmo quando insistimos apenas em informar e esclarecer, há um limite dado pelo livre-arbítrio do outro, como lembra Vieira no “Sermão do Espírito Santo”: “O mestre na cadeira diz para todos, mas não ensina a todos. Diz para todos, porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns aprendem, outros não. E qual é a razão desta diversidade, se o mestre é o mesmo e a doutrina a mesma? Porque, para aprender, não basta só ouvir por fora: é necessário entender por dentro.” É esse entendimento por dentro que diferencia o conhecedor do sábio, o acadêmico do professor, o “linguista” do comunicador, a ditadura verbal da livre-expressão.

A Língua Portuguesa Venceu!

“A Música Venceu”, tema vitorioso da escola de samba Vai-Vai, de São Paulo, guarda mais afinidades com a realidade política e linguística brasileira do que se imagina. Há alguns meses, com a vitória de Dilma Roussef para o palácio do Planalto, surgiu o debate sobre a flexão de gênero da palavra “presidente”, que antecederia o nome da primeira mulher a ocupar o cargo no país. Presidente ou Presidenta? Esperei algum tempo para responder à questão, pois ainda se impunha o continuum do tempo para entender a resposta da população, sempre co-autora das mudanças.

As duas formas encontram respaldo na maioria das gramáticas, mas diga-se de passagem, gramáticas hoje em dia não são mais sinônimo de regras imutáveis. Apesar das discordâncias, penso ser mais elegante e discreta a designação “presidente” para ambos os sexos, sobretudo porque os sufixos derivados de verbos no infinitivo, como pedir, solicitar e cantar são facilmente flexionados como pedinte, solicitante, requerente e cantante. Quem governa é governante, e o cargo de governanta designa profissão respeitável, porém subalterna e alternativa linguística diferenciada para quem exerce a função de gerir uma casa, um bem particular, diferente da cidade, estado ou país, de caráter público. Fosse Dilma presidenta, sua administração estaria restrita à residência em Brasília. Portanto, as estratégias de marketing para diferenciar Dilma de outros presidentes do sexo masculino esbarram no decoro do cargo que ocupa.

Na tentativa de popularizar o termo “presidenta”, assistimos ao lamentável episódio de Marta Suplicy, no plenário do Senado, interromper o presidente da casa, José Sarney, em horário de trabalho – sim, as sessões para debate e aprovação de projetos das quais participam os parlamentares são atividades-fim e apartes para a correção do vernáculo poderiam ocorrer em outro momento – e corrigi-lo, em tom de repreensão: “Pela ordem, presidente. É presidenta, não presidente”, ao que teve de escutar calada a réplica balizada do professor e escritor, mais afiado na língua que na ética: “Estou preferindo a forma francesa, lé president”, e deu por encerrada a discussão, embora o registro do ocorrido tenha ganhado a cobertura de mídia pretendida pela sexóloga senadora.

Ocorre que nem tudo acontece como nos sonhos mirabolantes dos marqueteiros: nenhuma emissora séria de TV ou rádio, jornal ou revista, site na internet ou mesmo o mundo acadêmico têm utilizado a forma esdrúxula “presidenta”. O sucesso da simplicidade melódica prevaleceu sobre o trinado cafona dos interessados em destacar o sexo feminino como trunfo para o bom governante, que como bom profissional, não precisa afirmar seu gênero.

Ao contrário, como revanche, a língua escancara a preferência política de quem a quer manipular: Quer conhecer um petista? É aquele que não perde a oportunidade de se referir a Dilma como “presidenta”, seja em conversas ou por escrito, para afirmar sua ideologia. O fato de muitos jornalistas escreverem ou falarem “presidente”, é verdade, pode ser decorrente apenas de ordem superior de seus veículos, mas isso faz parte da profissão e do mistério que guardam todas as línguas, elas encobrem desejos e frustrações, mas sempre revelam o enunciador no subtexto. Seja o jornalista independente, seja seu veículo.

Quando o maestro João Carlos Martins afirmou que a máxima “a Música venceu” era seu mote preferido, o “pé-quente” de sua trajetória, ele o fez ao constatar que apesar de todos os obstáculos na vida, a música em todas as suas formas foi a companheira fiel e constante em seu sucesso pessoal e profissional, a ponto de ser maior do que ele mesmo. Penso que a glosa de todos os brasileiros e portugueses é “a Língua Portuguesa venceu”, pois por mais que a violentem e assaltem, e a torçam para os mais diversos interesses, ela reage e mostra sua força e verdade. Qualquer grupo político-partidário que quiser enfrentar o povo do Brasil, de Portugal ou de outros países lusófonos, vai sempre ter que encarar um inimigo muito mais poderoso: a Língua Portuguesa!

Aqui o passado é presente

Quando estava na faculdade de Letras, uma das lições mais proveitosas que recebi foi sobre Determinismo Linguístico. Segundo essa corrente, as sociedades têm sua cultura determinada pela língua que falam. Para qualquer aluno, a simples ideia de uma língua viva descortina o universo de pesquisa de campo e leitura que o estimula a observar os fenômenos da língua como dados sociológicos ou antropológicos. Um dos teóricos dessa corrente foi Marshall Mcluhan, filósofo e educador canadense, guru citado por muitos linguistas, que até participou como ator no filme “Noivo neurótico, noiva nervosa”, de Woody Allen, fazendo papel de si mesmo e criticando seus supostos leitores.

Em um de seus livros, “Revolução na Comunicação”, Mcluhan menciona características da língua de uma tribo australiana de aborígenes, por exemplo, que não tinham em seu léxico a palavra “árvore”, mas nomeavam cada uma que encontravam com substantivo próprio, de forma que cada árvore representava uma pessoa, com suas necessidades e individualidades. A essa conclusão, acrescento minhas observações sobre algumas peculiaridades da Língua Portuguesa, moldura que nos caracteriza e aprisiona. Não vou cair na armadilha de afirmar que só brasileiro ou português sentem saudades, pois essa palavra só existe na nossa língua. Em outros idiomas, como no Inglês “miss you”, ou no Castelhano “nostalgia”, há similares e o sentimento que mói o coração pela ausência do outro é igual em qualquer lugar do mundo, mas particularidades de língua podem, sim, determinar a cultura, e o primeiro índice é a literatura.

Sabe-se que o povo português sempre foi muito saudosista, voltado para seus heróis e amores do passado, basta ler a jóia da coroa da Literatura Portuguesa, “Os Lusíadas”, de Camões, que conta os feitos de grandes navegadores do passado. Outros exemplos? Eça de Queirós: Em “A Cidade e as Serras”, Jacinto troca o meio urbano pela vida no campo, ação motivada pela busca de uma vida simples, como a de seus antepassados .

Leia Machado de Assis. O que é “Dom Casmurro”, além de uma reflexão de um amor do passado que se consumiu no ciúme? E “Memórias Póstumas de Brás Cubas”? Um homem que já morreu contando seu passado quando era vivo. Mais exemplos: José Saramago, que compôs um “Memorial do Convento”, voltado para eventos e aventuras ocorridos no século18; Fernando Sabino, que conta um encontro marcado que não aconteceu. Na poesia, os românticos são o melhor exemplo: Casimiro de Abreu, em “Meus Oito Anos”: “Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infância querida/ Que os anos não trazem mais!”.

Logo depois e quase concomitantemente ao Romantismo, o parnasiano Olavo Bilac também só usa os verbos no passado, como em “Nell Mezzo del Camin”: “Cheguei. Chegaste./ Vinhas fatigada/ E triste, e triste e fatigado eu vinha./ Tinhas a alma de sonhos povoada, / E a alma de sonhos povoada eu tinha”. A saudade é a tópica nas diversas canções de exílio, entre elas a do mesmo Casimiro de Abreu (Se eu tenho de morrer na flor dos anos,/ Meu Deus! não seja já;/ Eu quero ouvir na laranjeira, à tarde,/ Cantar o sabiá!), embora a de Gonçalves Dias seja até decalcada no Hino Nacional Brasileiro (Nossos bosques têm mais vida, nossa vida mais amores).

O maior poeta modernista português, Fernando Pessoa, só para citar o ortônimo, fora os heterônimos, é todo voltado para o glorioso passado dos navegadores, como em “Mar Português”: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/ São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos, quantas mães choraram...”.

Por isso, resolvi fazer uma investigação das razões dessa melancolia introjetada nas veias, típicas não só do português, como do brasileiro. Compartilho algumas dessas descobertas deterministas.

Na nossa língua, para falar no pretérito há quatro tempos no modo Indicativo: o Pretérito Perfeito, que é um passado terminado: amei e ponto; o Pretérito Imperfeito, que é o passado ainda recorrente: amava e amava e amava; o Pretérito Mais que Perfeito, que designa um passado antes do passado: amara a mulher que se foi (uma filigrana da língua, um preciosismo digno de orgulho, tal a pormenorização acerca do tempo); e o Futuro do Pretérito: ele amaria aquela mulher que o fez de trouxa, isto é, até no futuro há um gosto de passado que poderia ter acontecido!

No modo Subjuntivo, cada vez mais em desuso pelos falantes (é cada vez mais comum o uso do indicativo: “Você quer que eu fico com você?”, em vez de “Você quer que eu fique com você?”), também há o Pretérito Imperfeito, condicional: Se eu amasse! Se eu fizesse! E as formas nominais? O particípio “amado”, que sempre forma um composto com verbo auxiliar: fui amado, era amado, mais corrente na linguagem oral. O gerúndio, forma amaldiçoada por alguns, mas uma expressão clássica quando bem empregada, como o fizeram Camões, Vieira e muitos outros, dá um toque de passado que ainda persiste no presente, um jeito brasileiro de protelar as atividades: estou trabalhando até dar a minha hora, estou amando até não sei quando.

Ao todo, portanto, são sete as possibilidades de expressão pretérita. Para o futuro, apenas dois tempos: o Futuro do Presente: eu amarei esta mulher; este um futuro seguro, ancorado no agora, e só este, pois no Subjuntivo o futuro é incerto: Quando eu amar...vou me entregar totalmente. Não é de surpreender a idéia sebastianista, o messianismo farisaico, o arrependimento tardio, a suposta falta de memória traduzida na reivenção da roda, a necessidade do pai salvador e da mãe mandona e chorosa, arquétipos da cultura dos países lusófonos.

Os publicitários brasileiros parecem já ter entendido muito bem essa tendência, em vista do sucesso de algumas propagandas. Alguém se lembra do comercial “O primeiro sutiã”? No anúncio da marca Valisére veiculado na TV, criado pela agência W/GGK em 1987, atual W/Brasil, e protagonizado por Luciana Vendramini, uma menina no início da adolescência abandona seu ursinho de pelúcia no canto da cama e olha, encantada, no espelho, o efeito sensual de usar um sutiã. Premiado, o comercial certamente não era destinado às jovens que usariam seu primeiro porta-seios, mas às mulheres maduras, nostálgicas da experiência única, do passado. Por breves momentos elas tiveram a oportunidade de reviver breves momentos novamente o ritual de passagem de menina a mulher. Na intenção dos publicitários, tal experiência poderia ser repetida com o uso daquele produto, com aquela marca, pelas efetivas consumidoras.

Como falei anteriormente na literatura em Língua Portuguesa, voltada para o passado por razões até gramaticais, em contrapartida devo reportar-me à literatura em Língua Inglesa, que se carcateriza pela pouca flexão verbal. Há uma profusão de publicações de ficção científica, fantástica e de suspense e terror, em autores como Isaac Asimov, Aldous Huxley, H.G Wells e muitos outros.
Recentemente, assisti a um desenho norte-americano produzido pelos estúdios Disney, “A Família do Futuro”, voltado ao público infantil, cuja temática era o dilema entre o resgatar o passado ou apostar no futuro. O enredo retratava uma das situações mais prementes para justificar a recorrência ao passado: um menino tem a possibilidade de voltar ao dia em que foi abandonado por sua mãe biológica na porta de um orfanato e dissuadi-la, tendo outro destino e acabando com todos os sentimentos de rejeição que o acompanharam até a fase da adolescência. No entanto, ele tem outra opção: aceitar o passado e apostar no futuro, na adoção por outra família.

A partir da compreensão linguística e social dos países de língua Inglesa, fica fácil adivinhar qual foi o final da história! O desenho é coroado com uma citação de Disney, e lembra seu lema “siga em frente”, que ilustra bem a diferença de pensamento entre eles e nós: There’s really no secret about our approach. We keep moving forward—opening up new doors and doing new things—because we’re curious. And curiosity keeps leading us down new paths." (Não há realmente nenhum segredo sobre nossa abordagem. Continuamos a avançar – abrindo novas portas e fazendo coisas novas – porque somos curiosos. E a curiosidade nos leva a trilhar novos caminhos).

Os gêneros e produtos em geral voltados para o futuro têm pouca ou nenhuma popularidade por aqui. Os editores e escritores de ficção científica, por exemplo, têm que bancar do próprio bolso a publicação de contos, coletâneas, promover concursos e ainda assim sofrem no mercado comercial. Sem ressentimentos, é só constatação de que o passado está na nossa alma e é o nosso negócio na literatura e na vida, o próximo passo é aproveitá-lo para viver o presente e projetar o futuro. Quem viver, verá.