quarta-feira, 7 de dezembro de 2016


“Os Sertões”, uma reportagem maior que a falácia literária

Se houvesse uma obra que eu pudesse eleger como a grande catedral da História política do Brasil, certamente seria “Os Sertões”, de Euclides da Cunha. Pouco lido e muito estudado, o livro é produto das reportagens de Euclides para o jornal O Estado de São Paulo, como correspondente em Canudos. Este mês foi lançada uma edição crítica da obra, pela editora Ubu, de autoria da prof.a Walnice Nogueira Galvão, que levou em consideração as anotações e correções que o autor fez de próprio punho, o que daria mais luz a este conjunto de escritos.  A pesquisa da professora contemplou também as cartas trocadas entre Euclides e Júlio Mesquita, do Estadão.  Segundo Walnice, o autor fez questão de suprimir mais de mil vírgulas do escrito, o que por si só muda substancialmente o texto.

Ou mudaria, se fosse levado em consideração o gênero do escrito. Não vou fazer aqui uma resenha dessa edição, estou aqui para falar de “Os Sertões” como documento e criticar os que ignoraram ser ele de uma categoria informativa e produto de um tempo em que a notícia ia acontecendo ao longo dos dias sem se transformar em História tão rapidamente. Talvez seja esse um ponto difícil de abordar, pois exige um deslocamento do nosso olhar da letra para todo o contexto e o significado de ser um repórter na virada do século 19 para o século 20.

Euclides foi contratado como correspondente de guerra, pois o conflito de Canudos assim se anunciava e exigia documentação. Lá foi o repórter Euclides para o sertão da Bahia cobrir. Sair de um centro urbano, embora São Paulo não tivesse a pujança de hoje, para uma terra inóspita já demandava muita disposição de corpo e espírito, mas escrever reportagens que pudessem espelhar cada um dos atores, dos conflitos, da paisagem, de forma a envolver o leitor acabou sendo a armadilha em que a obra caiu, pois a fortuna crítica que se seguiu à publicação integral, em 1902, “alçou” os Sertões de texto informativo e histórico a Literatura no sentido estrito. Matou o texto sem por ou tirar vírgula ou ponto. Aprisionado, “Os Sertões” recebeu todos os insultos possíveis: barroco, linguagem rebuscada, naturalista e outros “istas”, difícil de ler...só faltou dizer que não tinha ilustrações.  Até de romance foi acusado! Recebeu elogios, também, claro, embora a homenagem fique mais na intenção que no ato: Obra monumental,retrato de um Brasil da época, trabalho artístico e poético.

Sempre pensei esse deslocamento de gênero mais como castigo que como prêmio. Parece que alguns críticos e ensaístas preferem ler textos informativos ressaltando suas qualidades poéticas por acharem que o escrito é bom demais para ser “apenas” jornalístico, ou que ao conferir certa aura de obra de arte à utilitária reportagem aumentam o cânone literário da Língua Portuguesa. Convenhamos, ela não precisa disso. Ninguém precisa, porque o conjunto da obra de um idioma é composto pelo colorido da literatura em sentido amplo, da bula de remédio à dramaturgia, da carta prosaica à poesia lírica.  “Os Sertões” é a reportagem mais fiel da tragédia ocorrida em Canudos. Para tirar uma foto sem trair a imagem, Euclides usa todas as tintas de que dispõe, naquele momento e espaço. Começa por definir uma terra, caracterizar um homem e contar uma luta que ocorreu naqueles rincões em que um povo, esquecido pelo governo e lembrado sem dó quando da afirmação de suas ideias e modo de viver, foi dizimado sem rendição.

Estuda-se muito pouco a guerra de Canudos nas escolas, assim como a revolta da Armada e todas as batalhas e guerras pela restauração da Monarquia no Brasil, abafadas as repercussões pelo governo republicano que proibiu todas as manifestações em favor da Família Imperial e reprimiu cruelmente qualquer tentativa de levante até 1988. Foi nessa ocasião que a constituição permitiu que se falasse sobre o regime monárquico, com a proposição de um plebiscito anacrônico, uma vez que a população não tinha mais a memória da monarquia.  Esses maus leitores, ensaístas, professores, historiadores e críticos que colaboraram, conscientemente ou não, para a amnésia nacional, são diretamente responsáveis pelas catástrofes educacionais e políticas que sofremos hoje. Tal plebiscito foi claramente premeditado para beneficiar a república sedimentada sobre um golpe de oligarquias escravocratas, que aí estão até hoje ocupando cadeiras no congresso nacional e nos cargos executivos.

Em uma de suas excelentes aulas, o diretor de teatro e professor Fernando Peixoto comentou sobre a maneira certa e a maneira errada de se montar um texto como Hamlet, de Shakespeare. Não há uma maneira “certa” de se montar um Shakespeare, mas certamente há muitas maneiras “erradas”. Uma delas é tratar Hamlet como uma peça psicológica, colocando o protagonista em conflito consigo mesmo como se precisasse de divã e remédio tarja preta para entender seus sentimentos conflitantes (ah! Que romântico, que piegas!). Outra é entender que essa tragédia faz parte de um bloco político inserido em uma obra densa e provocadora, que fala ao nosso discernimento e afeta nossas decisões, questiona nossa liberdade. Era assim que ele montaria Hamlet: a luta pelo poder e suas consequências. Um Hamlet que valoriza o senso crítico e desafia o senso comum.
Do mesmo modo, “Os Sertões” tem sido ignorado por professores de História, historiadores e livros didáticos; surge como ilustração de um discurso diametralmente oposto, cultivado na ideologia de um gênero poético, fazendo o autor se revirar no túmulo.

Outra vez, há muitos anos, quando de uma defesa de tese sobre a obra de Carlos Drummond de Andrade, o próprio poeta estava presente, no fundo da sala, pois fora convidado e elegantemente ficou assistindo à palestra da mestranda sem se pronunciar. Ao final, alguém da banca o reconheceu e pediu que viesse à mesa. Ele assomou o lugar à frente e foi logo questionado sobre o que havia achado da apresentação da aluna e das observações dos professores sobre sua vida e obra. Humildemente respondeu: “Hoje vivi essa magnífica experiência de saber coisas sobre mim e meus poemas que eu mesmo não conhecia, eu realmente ignorava que tinha feito tudo isso”. Há quem veja na observação o exemplo de uma obra aberta merecedora de louros. Eu teria reprovado a aluna. E a banca toda. Um trabalho que promove o estranhamento do próprio autor diante de sua obra deve estar mentindo. É fruto de vaidade intelectual.

Na condição de repórter, Euclides da Cunha escreveu “Os Sertões” para informar o que estava acontecendo de terrível, trágico e perverso em Canudos, com a linguagem realista da época e não pode ser acusado pessoalmente de positivista ou determinista no sentido lato, pois esse traço comum na abordagem do final do século 19 está em todas as grandes reportagens e mesmo crônicas como as de Lima Barreto e Monteiro Lobato.

A fim de promover a coleção de dois volumes que integram a edição crítica de ‘Os Sertões”, o jornal o Estado de São Paulo realizou um debate na Livraria Cultura com as professoras Walnice Nogueira Galvão, Flora Süssekind e o teatrólogo Zé Celso. Desnecessário dizer que o último convidado carnavalizou o evento e monopolizou as atenções ao expor sua visão delirante sobre a obra que ele adaptou para o teatro. 

Perspectivas acadêmicas que amarram os discursos a modelos literários, bem como leituras subjetivas e psicológicas que tentam submeter um texto às suas vontades, ambas são falácias que derretem diante da narrativa seca, verdadeira e pontuada pelo repórter Euclides da Cunha como fato irretocável: “Concluídas as pesquisas nos arredores, e recolhidas as armas e munições de guerra, os jagunços reuniram os cadáveres que jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos. Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas bordas da estrada, as cabeças, regularmente espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o caminho. Por cima, nos arbustos marginais mais altos, dependuraram os restos de fardas, calças e dólmãs multicores, selins, cinturões, quepes de listras rubras, capotes, mantas, cantis e mochilas...


quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Brega era sua avó!

Tudo começou quando o amigo cantor e compositor Márcio Greyck postou uma reclamação que recebeu pelo Facebook: “Uma pessoa daqui me disse que eu não deveria mais cumprimentar dizendo ‘Boa noite, Faces’, porque era brega”. Esse gatilho disparou a ideia de escrever esta crônica, quase um desagravo para o querido e bem-sucedido artista que começou sua carreira nos anos 60 cantando músicas românticas como “Aparências” e “As Lembranças”.
Como não ouço palavra que peça passagem livre de um ouvido a outro de minha cabeça, “Brega” dançou pela minha reflexão e me levou à adolescência, quando fui testemunha de sua etimologia.
Você sabe o que é uma falsa etimologia? Ao longo de minha história como professora e jornalista, deparei-me com algumas: “forró” teria origem em  “for all”, bailes que os militares americanos promoveriam  “para todos”, nas bases militares nordestinas na segunda guerra. Essa bobagem até engraçada encontra a verdade em Câmara Cascudo, que aponta a correta etimologia como uma derivação de “forrobodó”, que em banto significa “confusão”, “arrasta-pé”.
O mesmo ocorre com outras palavras cuja apropriação para construção de uma mitologia não se sustenta, ao contrário, justifica o preconceito e aprofunda as divisões na sociedade. “Brega” é o outro caso. Procuro por curiosidade em diversos sites a origem dessa palavrinha de duas sílabas, que designa muito mais que um gênero musical, mas uma estética que passa pela moda e até pela forma de pensar e de se comportar.
Etimologia que chega a ser risível credita à palavra “Brega” um erro de letreiro em neon. Em uma cidade do Nordeste uma boate chamada “Nóbrega” e que apresentava shows de Waldick Soriano, Odair José e outros afins teve o trecho ”Nó” apagado e as pessoas passaram a chamar a boate de “Brega”, pois foi o que sobrou do cartaz falhado! E coitado do Padre Nóbrega, que teve seu nome emprestado para esse falso anagrama!
Bem, fim da piada, vamos à verdade dos fatos (sim, pois só se pode provar por fatos, que os argumentos bailam no vento da História). O termo “Brega” remonta os anos 70, começou como gíria, fruto de preconceito contra as empregadas domésticas.  “Brega” é corruptela de “empregada”. O termo nasceu em São Paulo, não tem nada a ver com o Nordeste, assim como Forró não tem relação com as bases militares da segunda guerra, pois o termo era utilizado desde o século 19.
O que estava na cesta básica cultural das empregadas domésticas nos anos 70? Fotonovelas, programas de auditório como os de Chacrinha e Sílvio Santos, música romântica, roupas e acessórios baratos, pois o salário sempre foi aviltante e o trabalho, quase escravo; e pensamento de senso comum, traduzido por linguagem de massa: “Só o amor constrói”, “Sou pobre, mas honesto”, “dinheiro não traz felicidade”, valores que hoje estão esquecidos, infelizmente.
Mas a cereja do bolo de ser brega era a breguice. Sim, brega passa de adjetivo a substantivo abstrato para designar um modo de ser e enterrar de vez as possibilidades de ascensão social: você pode deixar de ser brega, mas a breguice nunca vai sair de quem é ou foi brega. Cruel, não é? O uso dessa palavra, e como acabei de argumentar, desse conceito, tem raiz funda na sociedade brasileira e remonta o pensamento escravocrata que considera a empregada doméstica um patrimônio da família, uma mucama, que passa de geração a geração. Ah! Esse tipo de empregada não existe mais! Ainda bem que temos cada vez menos mulheres que se submetem a dormir em um quarto senzala de dois por um e ficar até meia noite para lavar a louça e “passar um paninho”. Quero deixar claro aqui também que não estou na defesa da profissão, deixo isso para os sindicatos. O assunto aqui é a origem preconceituosa da gíria “brega”, que sobreviveu aos governos militares, à abertura, aos planos econômicos e à tragédia política dos últimos anos.
Nos anos 90, uma onda retrô sobreveio e garantiu o sucesso de músicos como Falcão, que deu uma nova (ou velha) roupagem ao brega, com figurino exótico,  melodias  populares e bem-humoradas, redirecionando o termo e consolidando o uso dessa palavra como a empregamos até os dias atuais. Mais ajustada à classe média e “moderninha”, alçada a cult pelos Mamonas Assassinas e Titãs, alguns compositores emplacaram até novas versões em vozes de antigos desafetos como Caetano e Gil. Mas o DNA ficou: “Brega” é corruptela de empregada.
E como crueldade é pouco para os preconceituosos de plantão, o termo se estende a aqueles que produzem bens culturais para o segmento popular. Márcio Greyck, Wanderley Cardoso, Agnaldo Timóteo e Roberto Carlos poderiam se encaixar nesse conceito? Apenas para os pseudo-intelectuais que hoje dividem a sociedade e insistem em promover luta de classes. No mundo real, todos somos iguais e precisamos uns dos outros, e a derrocada do empresário é não ter um funcionário bem-preparado. E a do funcionário é não ter um patrão que possa pagar o seu salário. No mundo real, o advogado ouve música sertaneja e o motorista do ônibus coloca em seu ipod pop americano, e por aí vai. A estética brega se incorporou ao nosso dia a dia, virou sinônimo de popular.

Márcio Greyck, um pouco mais velho e experiente, continua bonito e saudável, cabelos longos e violão, cantando músicas românticas e fazendo muitos shows. Sua trajetória de vida está de acordo com a obra. Casou-se, teve filhos e mora feliz em um sítio bucólico.  De seu computador, provavelmente em um escritório que tem uma linda vista para o jardim, ele coloca no Facebook imagens de flores, boa comida mineira, paisagens e animais. Suas palavras sempre são gentis e motivadoras.  Mas existe o brega, sim: o pensamento brega, vulgar, o senso comum dos discursos que pregam que “cada caso é um caso”, “gosto não se discute”, e “tudo é relativo”. Desses, eu quero distância, pois são aparências, nada mais!

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

Discordância Nominal: Questão singular para pensar plural



Um dos pontos mais controversos em Língua Portuguesa é a Concordância. Nominal ou verbal, ela sempre dá trabalho aos estudantes, aos professores, jornalistas, escritores ou outras pessoas que escrevem ocupados com a norma culta, ou com a linguagem padrão que nos faz membros de uma mesma comunidade - a dos falantes da Língua Portuguesa. Pois bem, vou voltar ao ponto da concordância, ao abordar algo que tem me incomodado muito. Ninguém precisa ficar preocupado com essa questão aqui, porque vou tratar do assunto de modo raso, só apontando a concordância do artigo definido "o" ou "a" com o substantivo a que ele se refere.

Assim como diz a letra da música de Roberto Carlos, "Todos estão surdos", às vezes acho que as pessoas estão incapazes de ouvir, talvez porque haja muito lixo que entra pelos nossos ouvidos ultimamente, na forma de música de má qualidade ou de bobagens faladas por jornalistas, publicitários e políticos, amplificadas pelos veículos de comunicação. No caso musical, a maior parte das pessoas não consegue ouvir verticalmente, isto é, escutar atrás da melodia, a harmonia que a apoia. Também os discursos enganadores e mal-escritos passam despercebidos por grande parte do público, pouco transparentes que são suas entrelinhas e intenções. Muitos parecem não ouvir nem os erros gritantes de concordância nominal, a partir do artigo. Será que não dói ao ouvido "Os pessoal fundaram as cidade que nós mora"? Esse modo de concordância, ou de discordância, comum em se tratando de variedade linguística em certas camadas sociais, é aceitável como dialeto regional, mas inadmissível na publicidade e no jornalismo, que se apresentam na mídia para um grande público. Parece que os publicitários inventaram uma "A Casas Bahia". Que negócio estranho é esse, colega? Não seria mais razoável e elegante "A Casa Bahia", ou "As Casas Bahia"? Os "publicitários linguistas" de plantão inventaram mais uma moda?

Será que a intenção foi dar uma dimensão mais singular a este estabelecimento comercial que tem inúmeras lojas, ou resolveram economizar os "s" para testar os ouvidos do consumidor? Provavelmente provém da ideia errada de que "Casas" é uma marca, então, pode prescindir de obedecer às regras gramaticais, como no caso de "Maizena", marca da genérica maisena (mais - milho/ ena - amido). A invenção na concordância nominal não é novidade na publicidade. Quem não se lembra do jingle natalino: "Na Pernambucanas - em todos os lares, a Paz seja total, e mais os nossos votos de um feliz Natal". Francamente, as Pernambucanas não precisam desse expediente para chamar atenção. Estão presentes até em Quixeramobim!

Pessoalmente, defendo a forma "As Casas Bahia", ou "As Pernambucanas". Confere às lojas uma dimensão variada, com presença em diversos bairros, cidades e estados, de fácil acesso. É simples também entender a concordância, mais melódica e prática para concordar com o verbo: "As Casas Bahia oferecem o que há de melhor", por exemplo, em vez de "A Casa Bahia oferece...". A frase dá a entender que só há uma loja a prestar o serviço. Contudo, do modo como está, com erro de concordância, soa ainda pior: "A Casas Bahia oferecem...". Péssimo, uma vez que somos sempre levados a concordar a partir do artigo, que está distante do verbo, mas determina o substantivo. Isto é, ficamos na memória com o singular do artigo "a", embora o substantivo "casas" esteja no plural.

O que justifica o uso indevido do artigo no singular referindo-se a substantivo no plural pode ser decorrente do despreparo ou da arrogância de publicitários que menosprezam seu público, ao considerarem que o singular simplifica o entendimento, quando, na verdade, essa forma refere-se a universo muito mais geral que o plural. Explico.

O que você, leitor, acha mais abrangente: "Os Homens" ou "O Homem"? "As Felicidades" ou " A Felicidade"? "As Verdades" ou "A Verdade"? Vejamos, em uma rápida consideração:

Os Homens = A totalidade dos homens sobre a Terra, a Humanidade como nós a conhecemos em nosso escopo de conhecimento. "Os Homens são mortais".
O Homem = A Humanidade passada, presente e futura, os homens em caráter universal e sua essência mortal. Os homens que conhecemos e os que nunca conheceremos. "O Homem é mortal"
As Felicidades = Votos de felicitação por uma ocasião natalícia, festiva, preenchida com desejos transitórios de saúde, sucesso, prosperidade.
A Felicidade = Para alguns, o sentido da própria vida humana. Categoria abstrata e fonte de prazer e alegria inesgotáveis. Para outros, uma utopia ou um estado de perfeita harmonia interior.
As Verdades = Opiniões ou fatos relativos a contextos diferentes entre si, assim como a seres diferentes entre si, que guardam, cada um, suas razões e especificidades. A verdade de x é diferente da verdade de y pois estão em contextos, épocas, realidades sociais, econômicas, políticas completamente diferentes, e igualá-los ou compará-los é incabível. Em teatro, tratamos da "verdade da personagem": suas razões de pensar, agir e falar para que o ator possa compor e interpretar seu papel.
A Verdade = Categoria atemporal, símbolo da ética, da perfeição, do belo, do bem. Para alguns, é Deus: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida".

Portanto, tomar o santo artigo singular em vão vai além de transgredir uma norma da língua padrão. É um pecado que pode ser perdoado, mas merece confissão! Poderia ser até mandamento: "Não tome o santo artigo singular em vão! Não transforme substantivo concreto em abstrato indevidamente, porque só merece ser singular o que se refere não a um particular evento ou experiência, mas o que designa uma categoria universal, simbólica". Os publicitários e as agências contratadas pela família Klein já foram bem mais espertos, criativos e competentes, além de mais simpáticos e menos pretensiosos. Livres das amarras dos artigos definidos, eram fruto também de uma época em que o comércio vendia produtos, e não dívidas, ao som de uma melodia singela, cantada por um bonequinho com chapéu de cangaceiro: "Casas Bahia, dedicação total a você!"

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

As árvores e a consciência


Já há algum tempo tenho falado sobre o determinismo linguístico, aquela corrente que afirma serem nossos pensamentos determinados pela linguagem, embora pareça uma inversão do senso comum, de que a linguagem é fruto do pensamento. Marshall Mc Luhan, em “Revolução na Comunicação”, em 1966, recolheu relatos sobre a linguagem da tribo Wintu, na Austrália, cujos membros denominavam árvores com substantivos próprios.

Na contramão de nossa herança grega, que sintetiza o mundo em categorias ligadas a ideias, não havia a palavra árvore, mas cada objeto particular que entendemos como árvore recebia um nome diferente. Esse trabalho mais próximo da antropologia que da gramática, revela um pouco do pensamento e do modo de viver aborígine, bem como o nível de respeito que têm com os objetos que denominam particularmente, como fazemos, em nossa língua, com pessoas.

Pois bem. Nessa semana, por coincidência, em uma conversa com meu dentista – por um momento aquele consultório parecia um boteco em que os amigos debatiam o futuro da nação! – surgiu uma questão cuja resposta encontra eco no Determinismo Linguístico.

O mencionado dentista, Dr. Calegari, de seu gabinete reclamava da falta de consciência de alguns indivíduos que comentem crimes, da impunidade brasileira para com tais cidadãos, das eventuais sanções que eles mereceriam, chegando mesmo a mencionar a pena de morte como solução para a criminalidade! Observei que cristãos como nós – sim, ele também é um bom católico – deveriam orar e trabalhar para que eles tomassem a tal “consciência”. Reparem nas aspas.

O que é a consciência, então, para nós, de países que falam Português? O sujeito pode acordar todo dia, tomar seu café, ir trabalhar, voltar para casa, e é totalmente consciente de seus atos. Pode viver sua vida como esta se lhe apresenta e está consciente. Pode roubar, matar, enganar, e também está plenamente consciente de seus atos. Ele escolheu o mal. Está consciente disso. Merece ir para a cadeia, pois se não tivesse consciência, iria para o manicômio judiciário. Não sou advogada, mas parece-me que o senso comum e a vivência demonstram mais ou menos isso. Mas o que isso tem a ver com as árvores da floresta australiana?

“Consciência” pode ser considerada uma síntese imprópria, por guardar significados que estão fora do léxico, da própria denominação, que nos propõe para cada palavra um conceito ou objeto diferente. “Con- sciencia” indica a condição de estar com o conhecimento de algo. Mas que algo é esse? É a própria Ciência? É estar ciente ou ter conhecimento de si mesmo e do outro? Essa palavra traiçoeira está para nós como está o nosso verbo “ser” para o “ to be” do Inglês.

Sabemos muito bem que “ser” não é “estar”. Enquanto o primeiro verbo refere-se a uma condição permanente, o segundo é um estado provisório ou transitório. Ser doente e estar doente indicam situações completamente diversas. Por isso, eu sou professora e o prefeito está no poder. O poder é transitório, enquanto a atividade educacional é sempre permanente.

Em inglês temos duas palavras para consciência: “conscience” e “consciousness”. O primeiro substantivo, “conscience” refere-se à consciência de si, do outro, do que se deve fazer ou não, é condição de lucidez física e sobrevivência social. Não tivesse o ser humano essa consciência, estaria em estado vegetativo ou internado em um hospício. Acordar (“awake”) tem raiz e classificação diferente de estar consciente, embora possa, em muitos contextos, ser utilizado para denominar o indivíduo que chega a algum estado de consciência, seja após o sono, ou de prontidão.

O segundo substantivo, “consciousness”, tem seu significado, em dicionário, totalmente diferente, é uma palavra cujo conceito só pode ser compreendido em Língua Portuguesa por meio de um conjunto de sinônimos: “consciência psicológica, sentimento, percepção”. Estudei em uma escola experimental, em 1970, de método Montessori, Escola Irmã Catarina, em São Paulo, em que se praticava realmente a inclusão de todos os alunos, inclusive crianças autistas e com paralisia cerebral. A indisciplina, diferente do que se ouve falar, já grassava as salas de aula naquela época, mas não havia castigos ou punições que dessem conta de casos mais graves. Os professores não tratavam os alunos problemáticos com suspensões, apenas tratavam-nos como “alunos inconscientes”.

Para que eles pudessem continuar o convívio com o grupo, tinham que ir a uma sala pensar. Passar da inconsciência para a consciência. As professoras indicavam o caminho: “Por que o que você fez é errado? A quem prejudicou esse seu ato? Quais as consequências dele? O que aconteceria se todos fizessem a mesma coisa que você?” - diziam elas, abaixando-se e olhando diretamente nos olhos do aluno.

A tomada de consciência, o consciouness dos anglófonos, é o primeiro passo para uma sociedade mais moral e justa. É uma consciência espiritual, transcende o que se deve ou não fazer, é o olhar para dentro e situar-se no mundo com o outro.
Nas diversas escolas em que lecionei, sugeri a criação de uma sala para que o aluno pudesse fazer seu exame de consciência, pois a conduta só se move a partir dessa prática saudável e tão discriminada – hoje, a escola é laica, baniram-se os ensinamentos cristãos e é mais provável encontrarem-se textos pornográficos que passagens da Bíblia.

As árvores dos Wintu tinham cada um seu nome por representarem um sentimento vivo dentro de cada um de seus falantes: o de que aquela particular árvore era única, insubstituível. A palavra consciência, para nós, lusófonos, guarda inúmeros significados e se mistura a ideologias que pouco têm relação com o resgate da ética, do escrúpulo e do sentimento religioso. Arrisco dizer que muitas vezes é a origem de novas palavras, quando conceitos transbordam e antigas nomenclaturas não mais dão conta da riqueza manifestada pelo pensamento.

Acredito que a partir dessa minha última observação deixei claro que não acredito nesse determinismo engessado, pois corre-se o risco de entender a linguagem como uma manifestação que amarra o falante a uma ideia, e assim o espírito da língua seria claramente nominalista, isto é, a função da linguagem seria meramente dar nome às coisas e às ideias, e assim poderia estar a reboque, descolada de seu significado, quando, na verdade, é o contrário. A linguagem como fenômeno é uma experiência de reconhecimento de uma cultura, mas os estudos linguísticos separam-se dos antropológicos justamente nesse ponto: não é possível fazer uma leitura vertical sem emitir algum juízo, um "pecado mortal" para a moderna antropologia. Oxalá possamos separar a consciência de si e do outro, o simples estar no mundo, da consciência divina que mora em nós, no outro e em toda a criação.

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Crônica de até daqui a pouco, ou o discurso no funeral do pai poeta

Quando meu pai morreu, em abril de 2009, os familiares e amigos pediram-me para falar algumas palavras por ocasião de sua cremação. Confesso que na dor da perda, saber que poderia falar dele e com ele, ainda que no corpo inerte e passada a alma, foi consolador, sobretudo porque à época ainda não havia me recuperado de um câncer de mama e viajei de São Paulo a Porto Alegre, logo após uma sessão de quimioterapia. Registrei por escrito e publico aqui, com os votos de que cada um possa ver em seu pai o poeta que versa sua vida:

Bom dia!
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a todos os amigos que vieram dar “até logo” ao meu pai, Farid Amatti. Eu poderia falar dele a partir de cada um dos papéis ou personagens que ele desempenhou, como todos nós, em sua trajetória de vida, mas acho que ficaria sempre uma parte incompleta, pois cada um que o conheceu tem uma visão compartimentada do que representou: irmão, pai, amigo, marido. Por isso, vou falar de alguém que esteve dentro dele em cada um desses papéis, e que todos nós conhecemos: o de poeta.

Alguns dizem que poeta é aquele que escreve poesia, mas eu discordo, Poeta é aquele que tem um olhar sensível sobre as coisas da vida. Foi desse jeito que papai viveu, amou e até morreu: como poeta.

Feliz de quem tem um pai poeta! Quando eu e meu irmão éramos crianças, ele nos contava as histórias da Bíblia, da mitologia grega e contos de fadas, moldando nossa personalidade e nos estimulando para a cultura e a ciência.

Também amou como poeta: casou-se três vezes, a última com a querida Eliete, sua namorada de infância, a quem escreveu cartas de amor até o último dia de sua vida. E ter um marido poeta, no mínimo, é garantia de um relacionamento com a base mais sólida possível, o amor. Ainda jovem apaixonou-se pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, e depois pela profissão de advogado, defendendo os pobres, os indefesos, com generosidade e bom-humor.

Quem tem amigo poeta, como meu pai, sabe que ele desperta o que há de melhor em nós, e assim ele fez com todos os que o conheceram, inclusive seu irmão, Flávio, que mais que amigo, foi o carinhoso Sancho Pança do meu pai Quixote, o conselheiro “pé no chão” do cavaleiro andante e sonhador. Papai poderia ter sido o que quisesse: intelectual, professor, artista, comerciante, industrial, mas foi muito mais: foi poeta.

Não digo que os pais poetas não tenham os defeitos de todos os pais, eles também nos fazem chorar. A primeira vez que ele me fez chorar foi de emoção, exatamente aos oito anos: no centro da sala de nossa casa, à noite, declamou para nós o poema "Meus Oito Anos", de Casimiro de Abreu, cujo trecho preferido era a metáfora de como via sua jornada nesta terra: Como são belos os dias/ do despontar da existência/ respira a alma inocência/ como perfumes a flor/ O mar é lago sereno/ o Céu, um manto azulado/ o mundo, um sonho dourado/ a vida, um hino de amor.

Assim viveu meu pai Farid: como uma criança, desfrutou a vida como uma celebração à alegria da qual ele nunca abriu mão, mesmo em tempos de dificuldades e doenças.

A melhor coisa do mundo é ter um pai poeta! Até com poesia ele escolheu como seria sua morte: ser cremado e ter suas cinzas jogadas no rio Guaíba, ao pôr do sol. A razão é uma das passagens mais poéticas que já vivemos: ele escolheu assim porque da primeira vez que o visitei em Porto Alegre, ele, eu e a Eliete fomos ver o Pôr do Sol no Guaíba. Era uma tarde quente e havia uma festa folclórica na praia, com baianas vestidas de amarelo e dourado, cantando, dançando e muitas pessoas alegres, conversando e bebendo. Ele já se locomovia de cadeira de rodas, mas fomos a um bar com escadas de madeira e um deck, de frente para o rio e o astro-rei: Enquanto a tarde caía, conversamos longamente, profundamente, não apenas como pai e filha, mas como amigos, parceiros e cúmplices que fazem planos para o futuro, entre eles escrever um livro juntos e viajar a Portugal. Ao final, sabíamos que não havia outro lugar no mundo em que desejássemos estar que não fosse ali, vendo o sol se pôr lentamente enquanto as sombras cresciam sob os nossos pés.

Quando eu tinha 3 anos, papai, você mandou fazer mais de uma centena de cartões para serem distribuídos para os amigos, com uma foto minha e um poema que você compôs: “Dos meus 3 aninhos, esta recordação/ aos meus amiguinhos de todo o meu coração”.

Agora, pai, eu te parafraseio e retribuo o poema:

“A todos os meus amigos, deixo esta recordação:/ levo o poeta na alma, e o menino no coração”.

Boa Viagem, pai, nós te amamos nesta e na outra vida.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pai, afasta de mim esse cálice!

Sírio Possenti rubricou um texto meu, "A Língua Portuguesa Venceu!", no site Terra. Pensam o quê? Não é qualquer um que pode ter um professor da Unicamp e linguista como orientador, sem precisar ir de São Paulo a Campinas, pagar pedágio e enfrentar mais de uma hora de viagem. Bendita internet.

Ele diz que meu texto está em itálico e o dele entre parênteses, mas neste artigo que ora escrevo a palavra dele recebe sempre aspas,acrescida da leitura vertical, já que esta é a proposta do blog. Representa respeito respeito ao texto alheio, o qual tive prazer de ler. É verdade que não o autorizei a fazer decalque de meu artigo “A Língua Portuguesa Venceu!”, publicado no site Observatório da Imprensa, e só lá, pois prezo aquele veículo pelo próprio nome: um local de onde se podem observar os movimentos da mídia e comentar com total liberdade. Um site que, acredito, entende a Linguística em sentido amplo, como um estudo de linguagem que não se atrela às especificidades desta ou daquela corrente, mas contribui para o bem maior: a Comunicação.

Com fúria, paixão e ironia, o professor desfere insultos contra o meu texto e minha pessoa, (chama–me “dona Amatti”, ignorando os bons modos!) e por isso não entendo por que ele se absteve de escrever seu próprio artigo, contentando-se em “revisar” um texto que não lhe pertence. A crônica que escrevi e postei - e não “desovei”, termo mais apropriado para quem vai dispensar um cadáver no matagal, ou parir, desembuchar, como a etimologia indica, e parece-me chocante essa última expressão, quase escatológica - não vem para confundir ou agredir pessoas ou instituições, mas esclarecer a influência que a Língua Portuguesa exerce sobre os falantes. Esse era o ponto que gostaria de focar, valores e interesses transparecem não apenas no discurso, mas nas escolhas que emolduram o texto, como demonstra a réplica do linguista. Vou me restringir a alguns pontos que apenas reforçam por que a Língua Portuguesa sempre vence a quem a quer torcer, mais ainda quando esse alguém perde a razão, o equilíbrio emocional e revela sua ideologia ao fazer publicar um apócrifo em sites sem o conhecimento do atacado. Ademais, sem a fineza de recomendar que se leia o texto original, remetendo-o ao link onde foi publicado. Ética é fundamental em qualquer debate.

O título da colagem, “Quem mandou escrever?”, uma pérola para análise do discurso, tem duplo sentido. Literalmente, a pergunta remete ao primeiro parágrafo do comentário do linguista e é uma ameaça: “Quem mandou escrever? Seu pai? Sua mãe? Um partido político? Algum veículo de imprensa de direita, esquerda, subversivo? O pastor? O padre? Está a mando de quem? Diga-me logo quem mandou você escrever, que quero saber! Senão...”. Que medo!

De outro, figurativamente, é a vingança do mau professor: “Quem mandou escrever? Escrever não é para você, “gramatiquinha”. Vá fazer um bolo ou passear no shopping. Agora você vai ver, vou rasurar seu texto, picar o papel, queimá-lo, deturpá-lo, substituir sua linguagem pela minha e fazer tantas rubricas que ninguém mais vai saber o que você escreveu, e nem o que eu escrevi como se fosse você”. Duplo medo! Em ambos os casos, prevalece a ordem: “Cale-se!”

Esse título me fez recordar a época da ditadura, em que nada podia ser publicado sem a prévia censura de funcionários públicos que rabiscavam seus garranchos em letras de música, artigos de jornais, colocavam tarjas pretas em trechos inteiros e escreviam nas margens com caneta vermelha observações risíveis: “este personagem não trabalha, é um vagabundo, não pode”, ou como em uma peça em que fiz assistência de direção: “vetado porque as crianças aparecem cometendo atos cruéis”.

É verdade que aqueles censores eram bem menos preparados que o professor linguista, mas a atitude é a mesma. Não vou comentar nem reclamar por meu raciocínio ter sido chamado de cafona. Não é uma questão de raciocínio, mas de informação acerca de como a linguagem é trabalhada no marketing político. Nada foge ao planejamento. Nenhuma vírgula. Cada palavra, gesto, olhar, enquadramento é estudado e determinado ao candidato que, obediente, segue a cartilha e ganha o pleito. Quem desobedece, é punido com a derrota nas urnas. Em suma, trata-se de uma batalha nos bastidores, em que vence a melhor publicidade. Mesmo pessoas bem-preparadas podem não compreender que isso está nas entrelinhas e faz parte do jogo político. Não é novidade, mas sempre é bom ser didático.

A expressão “presidenta” foi cuidadosamente estudada e mesmo depois de empossada a presidente, a palavra foi plantada em factóides com ampla cobertura de mídia, a exemplo do episódio com Marta Suplicy e Sarney. Preocupo-me, sim, com o rendimento e as atividades do congresso, afinal, somos nós que pagamos as contas, não?

Além de petistas, há outras pessoas que utilizam de modo contumaz a palavra “presidenta”: as feministas que acreditam afirmar seu gênero, os simpatizantes dos exotismos das palavras, ou simplesmente os puxa-sacos que querem agradar à presidente para obter favores ou demonstrar apreço e respeito; nenhum deles está livre para pensar fora das estratégias propostas e divulgadas desde o programa eleitoral gratuito, porque a palavra está colada na ideia, anterior a seu uso.

Digo isso porque não sou, como o linguista disse, “desinformada”. Além de ler inúmeras publicações, ouvir rádio, ler livros e ver quase todos os noticiários, assisti com interesse ao horário político, e por ter passado por quase todas as funções como jornalista, em um momento que prefiro esquecer, tive de trabalhar com marketing político.

Tentei, ao longo do meu texto rubricado, avaliar a quais partes o comentarista dedicava o maior bloco de comentários, a fim de identificar a causa de ter despertado tal paixão, pois com tantos textos anônimos que falam sobre a polêmica “presidente x presidenta” rolando na intenet, bem poderia ele apropriar-se de algum deles. Preferiu o assinado por mim. Estou lisonjeada.
O trecho mais extenso, em que a a linguagem escrita transforma-se em transposição da fala e quase estrangula o texto original, refere-se a uma imagem, uma ilustração a título de exemplo que fiz a respeito dos falantes de “presidenta”, claramente pertencentes ao partido da presidente. Mas ser petista não deve ser insulto ou vergonha, por que seria? Será que alguém pode me explicar quando a democracia se transformou em ditadura da maioria?

Os comentários culminam por me chamar de desinformada e reacionária, em um trecho entrecortado por hifens e com observações deslocadas, não sem antes errar a grafia de meu sobrenome, por um lapso de digitação, tal a sanha assassina do linguista. Isso significa que escreveu freneticamente e não revisou o próprio texto. Ele, sim, o “desovou” em alguns sites, na ânsia de livrar-se da peça, transtornado pelo crime perpetrado. Já estava a imaginá-lo com os cabelos eriçados e fogo a sair pelas narinas!

Como não sou reacionária, entendo a reação de quem se opõe a minhas ideias, ademais porque o trabalho de educar exige muita paciência, e mesmo quando insistimos apenas em informar e esclarecer, há um limite dado pelo livre-arbítrio do outro, como lembra Vieira no “Sermão do Espírito Santo”: “O mestre na cadeira diz para todos, mas não ensina a todos. Diz para todos, porque todos ouvem; mas não ensina a todos, porque uns aprendem, outros não. E qual é a razão desta diversidade, se o mestre é o mesmo e a doutrina a mesma? Porque, para aprender, não basta só ouvir por fora: é necessário entender por dentro.” É esse entendimento por dentro que diferencia o conhecedor do sábio, o acadêmico do professor, o “linguista” do comunicador, a ditadura verbal da livre-expressão.

A Língua Portuguesa Venceu!

“A Música Venceu”, tema vitorioso da escola de samba Vai-Vai, de São Paulo, guarda mais afinidades com a realidade política e linguística brasileira do que se imagina. Há alguns meses, com a vitória de Dilma Roussef para o palácio do Planalto, surgiu o debate sobre a flexão de gênero da palavra “presidente”, que antecederia o nome da primeira mulher a ocupar o cargo no país. Presidente ou Presidenta? Esperei algum tempo para responder à questão, pois ainda se impunha o continuum do tempo para entender a resposta da população, sempre co-autora das mudanças.

As duas formas encontram respaldo na maioria das gramáticas, mas diga-se de passagem, gramáticas hoje em dia não são mais sinônimo de regras imutáveis. Apesar das discordâncias, penso ser mais elegante e discreta a designação “presidente” para ambos os sexos, sobretudo porque os sufixos derivados de verbos no infinitivo, como pedir, solicitar e cantar são facilmente flexionados como pedinte, solicitante, requerente e cantante. Quem governa é governante, e o cargo de governanta designa profissão respeitável, porém subalterna e alternativa linguística diferenciada para quem exerce a função de gerir uma casa, um bem particular, diferente da cidade, estado ou país, de caráter público. Fosse Dilma presidenta, sua administração estaria restrita à residência em Brasília. Portanto, as estratégias de marketing para diferenciar Dilma de outros presidentes do sexo masculino esbarram no decoro do cargo que ocupa.

Na tentativa de popularizar o termo “presidenta”, assistimos ao lamentável episódio de Marta Suplicy, no plenário do Senado, interromper o presidente da casa, José Sarney, em horário de trabalho – sim, as sessões para debate e aprovação de projetos das quais participam os parlamentares são atividades-fim e apartes para a correção do vernáculo poderiam ocorrer em outro momento – e corrigi-lo, em tom de repreensão: “Pela ordem, presidente. É presidenta, não presidente”, ao que teve de escutar calada a réplica balizada do professor e escritor, mais afiado na língua que na ética: “Estou preferindo a forma francesa, lé president”, e deu por encerrada a discussão, embora o registro do ocorrido tenha ganhado a cobertura de mídia pretendida pela sexóloga senadora.

Ocorre que nem tudo acontece como nos sonhos mirabolantes dos marqueteiros: nenhuma emissora séria de TV ou rádio, jornal ou revista, site na internet ou mesmo o mundo acadêmico têm utilizado a forma esdrúxula “presidenta”. O sucesso da simplicidade melódica prevaleceu sobre o trinado cafona dos interessados em destacar o sexo feminino como trunfo para o bom governante, que como bom profissional, não precisa afirmar seu gênero.

Ao contrário, como revanche, a língua escancara a preferência política de quem a quer manipular: Quer conhecer um petista? É aquele que não perde a oportunidade de se referir a Dilma como “presidenta”, seja em conversas ou por escrito, para afirmar sua ideologia. O fato de muitos jornalistas escreverem ou falarem “presidente”, é verdade, pode ser decorrente apenas de ordem superior de seus veículos, mas isso faz parte da profissão e do mistério que guardam todas as línguas, elas encobrem desejos e frustrações, mas sempre revelam o enunciador no subtexto. Seja o jornalista independente, seja seu veículo.

Quando o maestro João Carlos Martins afirmou que a máxima “a Música venceu” era seu mote preferido, o “pé-quente” de sua trajetória, ele o fez ao constatar que apesar de todos os obstáculos na vida, a música em todas as suas formas foi a companheira fiel e constante em seu sucesso pessoal e profissional, a ponto de ser maior do que ele mesmo. Penso que a glosa de todos os brasileiros e portugueses é “a Língua Portuguesa venceu”, pois por mais que a violentem e assaltem, e a torçam para os mais diversos interesses, ela reage e mostra sua força e verdade. Qualquer grupo político-partidário que quiser enfrentar o povo do Brasil, de Portugal ou de outros países lusófonos, vai sempre ter que encarar um inimigo muito mais poderoso: a Língua Portuguesa!